quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Ode que ferve

Vários comboios se descarrilam dentro do meu peito, várzea
à noite com muitos pirilampos acesos:
fervem e cruzam-se todas as linhas -
uma pirâmide de olhares cruzados em fogo,
muitas rotundas, auto-estradas, viadutos,
linhas de metro, passa estridente um comboio a alta velocidade, bebo toda a cidade
e caio rotundo para o chão -
sinto o suor de todos, o doce espasmo de uma jovem etrusca e todo o
Sol a incendiar-te o sorriso: fizemos um pacto com ele, com a vida com o futuro (Comboio estranho que derrete) fizemos um pacto com tudo que fluí, as linhas entrelaçaram-se, sinto a tua pulsação no meu peito e beijo-te os pulsos, a ansiedade nervosa da cidade, o doce espasmo das borboletas e a
Contracção de cada recém-nascido que parte –
A febre recheia a cidade –
O peito cheio de praças e cidades inteiras por dentro, viadutos túneis, contigo em cada esquina, dentro de cada café – com o pôr-do-sol dentro dos pulsos – a injectar o sol líquido no peito, não há mais caminho para trás – tenho a tua sede de futuro, são seis e vinte da manhã e a cidade acorda e adormece ao mesmo tempo – Sinto o calor de todos os que aquecem – A cidade a subir-me pela espinha dorsal, como uma nuvem branca, quando te abraço faço um pacto com a Vida
A cidade chama por nós e faz nós dentro de nós, tudo flui a uma velocidade frenética e todos os poetas futuristas, italianos, russos, franceses, portugueses, espanhóis levantam a cortina pesada da noite à velocidade do dia – enchem os teus olhos de sol – bebo por eles toda a cidade, todos eles sabem quanto te amo (cidade industrial, ceroulas, pastor alemão, civilização assustada, seringas e preservativos no chão, cave com vários fundos húmidos) a boca cheia de vidros – lambo-te o peito, os pulsos, os dentes, a língua (uma abelha na auto-estrada) o relógio de sol funciona à noite – se formos rápidos e seguirmos o dia – quando se patina sobre gelo fino a velocidade é a única salvação – e aqui cito todos os que não disseram a frase porque a sabem e sabem que o tempo corre – Sinto todo o desconforto dos cães à toa antes de serem atropelados
estou nas mãos dos fabricantes de carros que atropelam os cães, nas mãos dos operários, nos muros contra os quais urinam, os operários com as suas mãos – com a linha da vida a arder até ao pulso, e no fim do dia as mesmas mãos com a linha da vida a arder, ou várias linhas que se cruzam, a segurar o pulso da mulher, a acordá-la, a segurar o pulso de todas as mulheres dos operários – preciso tanto de calor – sou a sede, a raiva, o medo, a Vontade líquida de estar dentro de ti, sou líquido e fervo por ti dentro, amo os teus olhos a tua boca os teus dentes os teus pulsos os teus medos as tuas inseguranças as tuas dúvidas, os teus tornozelos, a tua saliva, a tua língua, os teus olhos, a tua boca, os teus dentes, amo os teus braços, as tuas mãos, braços, pernas, pés, e atravesso a peito a tua nuca quente, o teu peito a nado, sou líquido – vejo pelos teus olhos – todos – beijo-te os tornozelos, se penso em escrever um poema sobre o fogo lembro-me da bombeira voluntária de vinte e um anos que morreu a combater os fogos deste Verão – continuamos a subir – são 6:35 da manhã e a cidade acorda por ti adentro
Vejo por trás de ti
Por trás de nós
Por dentro de nós,

A cidade acorda: o sol dos teus olhos a injectar-me no peito uma Vontade Nova – Em tudo Nova – Amo tudo o que ferve
a noite láctea que te atravessa o peito de Calor
Ode que ferve e liga pelo skype,
nado por ti adentro.

Nuno Brito, Créme de la Creme, Porto, Planeta Vivo, 2011.

Rui Spranger: Natal

A festa hoje dá lugar à melancolia.
Já não somos crianças,
não temos insónias a pensar nos brinquedos
nem sofremos a ansiedade da meia-noite.
Crescemos…
O tempo levou-nos a fé
levou-nos os avós
levou-nos os pais.
Trouxe-nos os filhos
 e a melancolia
de termos sido crianças
e ter sido uma festa.



Rui Spranger, in Antologia da Cave, 25 Anos de Poesia no Pinguim Café, Porto, Apuro, 2013.

César Aira

Que poeta não está já habitado pelos poemas que ainda não escreveu?

César Aira, Parménides.

Rui Zink, António Jorge Gonçalves: O Grupo do Leão



sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

António Botto: Não. Beijemo-nos, apenas

 Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda –
Para outro momento,
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me – sou outro...

A névoa da noite cai.

Já mal distingo a cor fulva
Dos teus cabelos. – És lindo!

A morte
Devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,


- Que mais precisamos nós?

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

José Orozco : El hombre de fuego



José Clemente Orozco, El hombre de fuego, 1937.

Manuel Gusmão: A Velocidade da Luz

Há uma rotação do teu corpo
ou de uma parte dele que está pelo todo
e fora dos eixos do mundo.
Rodas a partir da cintura, estendes um braço,
há um músculo que se ilumina, uma onda
vertical em que tu própria te subisses;
então uma perna flecte-se, e o outro pé fica em ponta
oblíquo sobre o mundo que nesse instante
se suspende.

Há uma rotação do teu corpo –
Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio
um rumor que alumia a sombra silenciosa;
na sala, o homem quase surdo quase cego
ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.

Estás aqui. O intervalo de tempo já começou:
há uma rotação no teu corpo
que me exclui do mundo e
entretanto é feita para mim; atinge-me
à velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
sou tomado pelo vento do fogo que me consome
até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz
o incêndio restante sob a exausta crosta da terra

Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas
ou como o anúncio luminoso do prédio em frente
que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?

É como se soubesses
que voltará, sim, e que não, não poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu talvez
quem já lá não está. Quando
é quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar
à possibilidade dessa forma?


Estes corpos que somos são estranhas
invenções delirantes: tu não tens rodas e contudo
rodaste como se uma hélice te elevasse
só de um lado, te aspirasse até um outro estrato
aéreo, ou como se tu própria, folha aérea,
folheasses o ar e o mundo estremecesse
fora dos eixos.

Isso imprime-se nas areias do cérebro.

Depois, viesse um vento
e desfaria as dunas desse mapa:
a impressão ondula, muda de lugar, mas
resiste. É uma fotografia desfocada
uma tatuagem a outra sobreposta
uma cicatriz que esqueceu a ferida.


Interrompe-se aqui e ali
deixa de ser uma linha fina, um risco
no mundo, para ser uma corda que se entrança
e entrança o mundo.
Há qualquer coisa de movente fixo:
por mais que o tentes, o programa não deixa
que se apague toda e para sempre.
Desligas a máquina, mas o sulco permanece
no écran. Escreves-lhe em cima:
não desaparece, mas troca automática
mente algumas letras;
Encharcas-te em álcool, tabaco e comprimidos
mas a coisa insiste movida pelo fluxo
e refluxo das imagens, das águas, das areias, das sombras.


Há, houve uma rotação do teu corpo
e há qualquer coisa de irreparável
que me fizeste quando rodaste no mundo –
o quase homem aposta tudo em que voltará.
Joga tudo em que o mundo regressará
a essa forma de uma onda suspensa na música
a essa rotação fora dos eixos.

Porque é que dizes então «irreparável»?
Irreparável aponta para onde?

Irreparável é o mesmo que antiquíssima
e não idêntica?
A cicatriz é irreparável porque a ferida é perpétua,
esquecida e perpetua?
Tocas-lhe a milímetros de distância,
como quem não quer
a coisa,
e tu devias dar e não dar por isso.
Dir-se-ia que o ar se moveu, que uma coluna
do tempo se deslocou, dançou como a luz por entre nuvens
na parede verde de um canavial.


Há uma rotação irreparável do teu corpo
irreparável quer dizer que já não a podes parar
irreparável é alumbrada a alegria
o ar fugindo todo o mar subindo até ocupar
todo o campo do céu e
contudo
pudesses respirar o ar irrespirável.
Contra todas as evidências em contrário, a alegria


Manuel Gusmão, Teatros do Tempo, Lisboa, Editorial Caminho, 2001.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Maria Quintans


Elena Medel: Candy

Rota sobre el arcoiris,
descubro que la lluvia
es mi única coraza.
De noche se me forman
piscinas en el hombro,
mientras cuento mis pecas.

De mañana, imagino
que buceo en ellas:
que mi nuez es esponja,
que escribo mis poemas
con la ruina de nadie.
En el fondo de todo
-cuyo cielo es trapecio-
mi cuello de botella
se empequeñece y ríe,
con un mensaje dentro:
salir jamás de aquí,
hormiga a pata coja.

O tumbada en añil:
mi barbilla es cruel
y araña el imperdible
que sujeta mis botas,
o me arranco de cuajo
el punzón que me aferra
al balcón, y me asomo.
He estado ahí abajo.
Golpeo el techo y llueve.
Diluvia mi cabello:
la lluvia es mi defensa;
éste, mi himno acuático.

He estado ahí abajo.
Abajo, más profunda.
Donde puedo estar sola.
Incluso más abajo,
incrustada en el fondo
del agua o de la tierra.
Trenzas destartaladas:
soy muñeca de sucio
trapo, pisoteada,
rota sobre el arcoiris.

Natália Correia: O cavalo

Teus poros exalam o fumo
Do lar dos deuses de onde vieste.
Rompante de espuma e de lume
És sol quadrúpede ou mar equestre?

Desfilando derramas o ouro
Do teu rio inacabável,
Desmedido relâmpago louro
De um deus equídeo possante e frágil.

Tudo existiu para que fosses
No contraluz desta madrugada
Mitológica proporção perfeita
Em purpúrea bruma recortada.

Pois que te é divino mister
Humanos olhos extasiar
A dúvida é só perceber
Se vieste do sol ou do mar.


Natália Correia, Poesia Completa, Lisboa, Dom Quixote, 1999.

Manuel Cintra: E dói-me esse rio de já me não amares

E dói-me esse rio de já me não amares
de já me não quereres assim como eu te quero
de não sobressaltares porque sou eu que te espero
em esquinas de lágrima ou sorriso
foi-se o amor chegou o siso
e eu
que não nasci para ter juízo
E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas está, dê para o que der
e doa a quem doer
Passam sanguessugas pelos trilhos da memória
umas são mortas, outras são vivas,
outras são glória
de já não existir e teimar em persistir
e eu vou ao vento, sou palmeira seca,
sou teimoso sou frágil sou de teca de cetim
sou uns dias teu, outros assim assim
E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas sente, e já pouco quer
para além de seres mulher
E sei que já não sinto o que senti nem sei quem sou
mas seja eu quem for fazes-me falta, ainda és música
perdi a pauta, nada sei cantar, acho que esta conversa
é coça umbigo, vai ter que parar
Mas dói-me o teu ventre que não afago
como quem não sabe nadar
e hoje é de festa, amanhã é de mar
é de mar


Manuel Cintra, não sei nunca por onde, Quasi.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Manuel Maria Barbosa du Bocage: Soneto da Cópula Canina

Quando no estado natural vivia
Metida pelo mato a espécie humana,
Ai da gentil menina desumana,
Que à força a greta virginal abria!

Entrou o estado social um dia;
Mandou a lei que o irmão não foda a mana,
É crime até chuchar uma sacana,
E pesa a excomunhão na sodomia;

Quanto, lascivos cães, sois mais ditosos!
Se na igreja gostais de uma cachorra,
Lá mesmo, perante o altar, fodeis gostosos;

Enquanto a linda moça, feita zorra, 
Voltando a custo os olhos voluptuosos
Põe num altar a vista, a ideia em porra.

Manuel Maria Barbosa do Bocage, Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, (1854). Obra póstuma.

António Barahona

NAUFRÁGIO

Aves mudas
com olhares secretos
para a sede da terra

Na praia
os grãos de areia em moedas
e as ondas
de mãos inquietas

Passos indecisos
na expiação de pedras
atiradas ao mar

De bruços
aos fundos do oceano
eu prisioneiro das redes
no pensamento dos peixes


SIMULACRO DE SUICÍDIO
POR SOBERBA

O mundo era estúpido demais
para a sua inteligência
- assim pensou e permaneceu calado
perante si próprio
pronto para o último acto

Cavou um abismo ao fundo da água,
calculou a distância entre o som e a sombra,
e atirou-se de pé


Doía-lhe o coração a cair de pedra

António Barahona.

Georges Bataille: História do Olho

Veio-me à ideia que a morte era a única saída para a minha ereção; mortos Simona e eu, o universo da nossa prisão pessoal, insuportável para nós, seria substituído necessariamente pelo das estrelas puras, desligadas de qualquer relação com o olhar alheio, e adverti com calma, sem a lentidão e a torpeza humanas, o que parecia ser o fim dos desenfreados institutos sexuais: uma incandescência geométrica (entre outras coisas, o ponto de coincidência da vida e da morte, do ser e do nada) e perfeitamente fulgurante.


Georges Bataille, História do Olho, (1928).

Isaque Ferreira

Prova Cega

mover-se-ão com dificuldade
os joelhos
se a língua de um gato
me lamber
o céu da boca      

Inventário

As palavras que se dizem
durante o incêndio
um pequeno espaço de pão
o horizonte de telhados que promove
 a avaria dos dias
algumas ideias para a colisão
mais amor e equívoco
dando assoreamento ao coração
a alegria fragilíssima só ela
o amor outra vez                o incêndio
o amor outra vez
o incêndio


Isaque Ferreira, in Antologia da Cave: 25 Anos de Poesia no Pinguim Café, Porto, Apuro, 2013.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Inês Dias


 LA CATHÉDRALE ENGLOUTIE

Deste lado da vida
são sete horas (vestidas
de preto, vermelho e medo)
da manhã de outro dia.
Mas a janela fechada dá
para a noite ancorada
de leve sobre as esperanças
azedas da cidade.

Conto um rio preso num poço,
dois comboios afogados na pressa,
meia dúzia de faróis
acesos em prédios
cuja felicidade parece sempre
proporcional à distância.

O vinil negro continua a rodar,
atiça os seus pássaros enferrujados
contra a lua atada 
a uma das chaminés.
E a luz que nunca chega
traz as últimas notícias da guerrilha,
expõe o plástico roto nas armas
dos nossos heróis de ontem.

Abandono as saudades 
pelos telhados, com
as patas embaciadas, os olhos
magros. Saio.
Recomeço a fazer horas
para novos sonhos


Inês Dias, Um raio ardente e paredes frias, Lisboa, Averno, 2013.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Maurice Blanchot: O Espaço Literário

A impaciência é a falta de quem quer subtrair-se à ausência de tempo, a paciência é a astúcia que busca dominar essa ausência de tempo fazendo dela outro tempo, medido de outra maneira.


Maurice Blanchot, O Espaço Literário.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Francisco de Quevedo: Amor constante más allá de la muerte

Cerrar podrá mis ojos la postrera 
Sombra que me llevare el blanco día,
Y podrá desatar esta alma mía
Hora, a su afán ansioso lisonjera;

Mas no de esotra parte en la ribera
Dejará la memoria, en donde ardía:
Nadar sabe mi llama el agua fría,
Y perder el respeto a ley severa.

Alma, a quien todo un Dios prisión ha sido,
Venas, que humor a tanto fuego han dado,
Médulas, que han gloriosamente ardido,

Su cuerpo dejará, no su cuidado;
Serán ceniza, mas tendrá sentido;
Polvo serán, mas polvo enamorado.


Francisco de Quevedo (Madrid, 1580- Villa Nueva de los Infantes, 1645).

Maria do Rosário Pedreira: Nesse verão...

Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias
rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías
atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:
o verão desarruma os sentimentos.



Maria do Rosário Pedreira, Poesia Reunida, Quetzal, Lisboa, 2012. 

José Miguel Silva: O Atalante – Jean Vigo (1934)


No dia em que fomos ver O Atalante
eu levava, por coincidência, um cubo de gelo
no bolso do casaco. Lembro-me de tremer
um pouco. Até aí, tudo bem. Pior,
foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:
quem procura o seu amor debaixo de água,
acaba constipado.
Na altura, ri-me: pensei que falavas do filme.
sou tão estúpido.



José Miguel Silva, in Poemas com Cinema: Antologia organizada por Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.

Pedro Mexia: Cinema Fechado

Cinema fechado, melancólico
o arrumador, portões
a cadeado, ruído abafado de matinés
fria a rua, de lado a lado, a cena
em cinemascope restaurado
mas a memória no negrume horizontal,
premeditado, das barras.


Pedro Mexia, in Poemas com Cinema: Antologia organizada por Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.

Pedro Mexia: Rebel without a cause

Duas infâncias passaram
por mim: uma, no planetário,
com o espanto dos astros.

Outra, com Sal Mineo,
que no seu mundo ansioso
vislumbrou a eternidade.


Pedro Mexia, in Poemas com Cinema: Antologia organizada por Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Eduardo Leal: retrato a meia-luz

noite
como se a luz que resta
procurasse apenas
o brilho que guardaste
no instante breve
do olhar antes do sono
e das sombras
que dançam na tua pele

noite
e nós os dois
deitados lado a lado
num retrato a preto e branco
que a cor
(fora os teus olhos quando abertos)
apenas distrai o gesto

um livro na mão direita
que a outra mão
repousa suavemente
no negro dos teus cabelos

dormes no meu colo
e o embalo
é da ponta dos meus dedos
no intervalo prolongado das páginas por virar


Eduardo Leal, in Antologia da Cave: 25 Anos de Poesia no Pinguim Café, Apuro, Porto, 2013.

Tomás António Gonzaga

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
que viva de guardar alheio gado;
de tosco trato, de expressões grosseiras,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite,
e mais as finas lãs, de que me visto,
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte:
dos anos ainda não está cortado;
os pastores, que habitam este monte,
respeitam o poder do meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
que inveja até me tem o próprio Alceste:
ao som dela concerto a voz celeste
nem canto letra, que não seja minha.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Mas tendo tantos dotes de ventura,
só apreço lhes dou, gentil pastora,
depois que o teu afecto me segura
que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
de um rebanho que cubra monte e prado:
porém, gentil pastora, o teu agrado
vale mais que um rebanho e mais que um trono.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,
a quem a luz do sol em vão se atreve;
papoila ou rosa delicada e fina
te cobre as faces, que são cor da neve.
Os teus cabelos são uns fios d’ouro;
teu lindo corpo bálsamo vapora.
ah! Não, não fez o céu, gentil pastora,
para glória de amor igual tesouro!
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela!

Leve-me a sementeira muito embora
o rio, sobre os campos levantado;
acabe, acabe a peste matadora,
sem deixar uma rês, o nédio gado.
Já destes bens, Marília, não preciso
nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;
para viver feliz, Marília, basta
que os olhos movas, e me dês um riso.
Graças Marília bela,
graças à minha estrela!

Tomás António Gonzaga (Porto, 1744, Moçambique, 1810).


Silva Porto, A Ceifa.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

César Aira


 (... ) Ya dije que el color y la textura de los gusanos era lo más llamativo en ellos. Fue lo que me dió la punta del ovillo de la explicacíon. Porque esse color, esse azul brillante tan peculiar, ya desde el primer momento me había hecho pensar en el color de la célula de Carlos Fuentes que me había traído la avispa… Aunque cuando lo vi en la célula no me evocó lo que me evocava ahora, al verlo extendido en vastas superficies ondulantes. Ahora compreendía que yo había visto ese color en outra parte, y lo había visto en el mismo día de la captura de la célula, una semana atrás. Adónde? En la corbata que lucía ese día Carlos Fuentes! Una espléndida corbata de seda natural  italiana, sobre una inmaculada camisa blanca … y el traje gris claro … (un recuerdo atraía al outro, hasta completar el cuadro ). Y la magnitude del error se me hacía patente com una evidencia horrenda. La avispa me había traído una célula de la corbata de Carlos Fuentes, no de su cuerpo ! Un gemido escapó de mis lábios:
- Avispa pelotuda y la reputísima madre que te parió!
- Eh? – Dijo Nelly sorprendida.
- No, no me hagas caso, yo me entendo.
En realidade no podía culparla. Toda la culpa era mía. Cómo iba a saber esse pobre instrumento clónico descartable donde terminaba el hombre y empezaba su ropa? Para ella era todo lo mismo, era todo Carlos Fuentes.


César Aira, El congresso de Literatura, Era, México D.F., 2004.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Francis Bacon

Se vou a um talho acho sempre surpreendente não estar ali eu em vez do animal

Francis Bacon.