terça-feira, 26 de agosto de 2014

Merícia de Lemos. Tangentes


Exageros

Ai meu amor, eu bem sei
que nós nos queremos bem,
como os pombos querem bem
às suas asas.

Ai meu amor, tu bem sabes
que nos gostamos os dois
como gostamos do sol,
do mel, do pão…

Ai meu amor, tu bem sabes
Ai meu amor, eu bem sei
tal e qual como te agrado
nem mais nem menos me agradas.

Ai, meu amor, tu bem sabes,
ai meu amor, eu bem sei
que nos amamos os dois
bem fundo no coração

Meu amor, quem não anseia
ternuras exageradas?
Meu amor, eu creio as rosas
exageros das roseiras.


Merícia de Lemos, Tangentes, Lisboa, Ática, 1975.

Merícia de Lemos. Tangentes


Verde

O verde espalhou-se no ar
e vem verde das árvores, das folhas,
das folhas que me olham como olhos.
Os meus olhos são folhas a olhar…
É verde o Sol, é verde a terra, é verde a água.
O canto dos pássaros é verde.
E são verdes:
todas as rosas que ainda não abriram,
todas as palavras que se não disseram,
todos os raios do Sol que se não guardam
e o murmúrio das fontes
e a ária que não cantamos
e os pinheiros, as acácias, os cedros,
o alecrim, o rosmaninho, o loureiro,
os craveiros, os musgos e as heras.
Os cisnes são negros e são brancos,
Para que os lagos pareçam mais verdes.
Há aves, borboletas e avelhas, verdes, verdes.
Há olhos de crianças muito verdes
e são verdes as ervas do campo.
Foi verde o violino que hoje canta.
Há beijos e abraços tão frescos que são verdes.
As rãs e as lagartas são folhas
Que por serem loucas se perderam.
Há verde-claro, vivo, negro e seco
E há o verde rico das esmeraldas

Merícia de Lemos, Tangentes, Lisboa, Ática, 1975.

Delfim Lopes. No Cumprimento do Devir

VII
Como se não bastasse já
o sol ao ocaso
tal como a chapa gasta
ou ouro falso
Não chegasse o seu dinheiro sujo
e vem-me ainda
essa metáfora velha como
uma puta para
fechar o dia com a sua
chave de prata
a lua
Delfim Lopes, No Cumprimento do Devir, Lisboa, Edição de Autor, 2013.
Partilhado a partir de As Folhas Ardem.



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Violante de Cysneiros. A mim propria de ha dois annos


As minhas mãos são esguias,
São fusos brancos d'arminho,
Onde fiaste e não fias
O Sonho do teu carinho.

As minhas mãos são esguias,
Côr de rosa são as unhas,
E nellas todos os dias
Ponho a pomada que punhas.

Quando Eu as fico polindo
Perpassa nellas em ancia
A tua boca sorrindo…

Mas os meus dedos em i
Dizem a longa distancia
Que vae de Mim para Ti.



Violante de Cysneiros, in Orpheu 2, Lisboa, 1915.

Eduardo Guimaraens. Folhas Mortas


Dêste relogio belga, enorme, branco e triste,
tombam as horas como folhas mortas.
Por uma tarde outomnal, triste de spleen e folhas mortas:
Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste.

Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste e as horas tombam como folhas mortas.
Porque não nasci eu um lirio nobre e triste, pétala sem perfume entre essas folhas
mortas?

Um Versalhes fulgura em cada illusão triste, um Versalhes de outomno atapetado de
folhas mortas! Em cada vaso negro ha um lirio nobre e triste e as horas tombam como
folhas mortas…


Eduardo Guimaraens, in Revista Orpheu nº 2, Lisboa, 1915.

Manuel António Pina


O Bilhete de Identidade de um escritor é, na realidade (não me lembro onde é que li isto), o seu bilhete de alteridade.
Manuel António Pina


 

 In «À poesia pouco mais é dado dizer do que o silêncio do mundo», entrevista por Osvaldo Manuel Silvestre e Américo António Lindeza Diogo, Ciberkiosk, nº 9, Março de 2000. (Citado a partir de Inês Fonseca Santos, A Poesia de Manuel António PinaO encontro do escritor com o seu silêncio, Lisboa, Departamento de Culturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, 2004, p. 110. Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa).

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Rui Pires Cabral. Biblioteca dos Rapazes



Rui Pires Cabral, Biblioteca dos Rapazes, Lisboa, Pianola, 2012. (p.15).

Nuno Higino


As minhas mãos sabem a terra
das minhas mãos nascem gardénias
e neva nas minhas mãos
quando é inverno


Nuno Higino, Onde correm as águas, Porto, Campo das Letras, 2003.
Partilhado a partir de Poesia distribuída na rua 

Mário Cesariny.


in Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, (selecção, prefácio e notas de Natália Correia), Lisboa, Antígona / Frenesi, 2008, (5ª edição), p. 417.

Charles Baudelaire.

 (E para quê?...)

E para quê realizar projectos, se o projecto é já um prazer suficiente?


O spleen de Paris, XXIV.

Ana Marques Gastão. Alvo


Por uma vez conta como o corpo se ajusta à superfície
das tuas palavras. Fala de um depois anterior, desse sono
demente na fissura da luz; do violento voo ou ferida
cíclica, a ausência excedendo-se na pele quando a desoras
perfumas minhas mãos. Estende-se o calor aos lábios,
o verão simula a duração no verso, circula a água, vigorosa,
no fundo do poço até desaparecer na cama muda.
Nada é o que parece, lembra-se o que se esquece e eu digo
os dedos descalços dissolvem em tua boca o mel à flor dos
destroços. Olha-me: deita o olhar em meu vestido, tira-o
num gesto ébrio e precipitado como a um prisioneiro,
os peixes sobem lestos no lago imoderado e a noite volta,
lenta, adormecida. Dou-te o que não tenho - a história
de um rio exultante a explodir na boca em versão romântica,
poema sem trágicos sulcos ou fala completa. E tu, tu dás-me
o que sou: metáfora doendo-se alto onde acaba o texto.

Ana Marques Gastão, Nós: 25 Poemas sobre 25 Obras de Paula Rego, Lisboa, Gótica, 2004.


Paula Rego, Target.

António Aragão.


No fundo somos todos iguais. A prova básica dessa igualdade, que tanto se discute, reside principalmente no cheiro comum. Se, em vez de discutirem, as pessoas se cheirassem julgo que muitos equívocos acabariam.


          António Aragão,  Desastre nu: peça em quatro episódios, Lisboa, Moraes, 1981.


Partilhado a partir de: Biblioteca Municipal do Funchal

António Manuel Couto Viana. As Rapinas Rapaces


Do cerne da calúnia,
As rapinas rapaces
Buscam a morte, o oiro,
Em lascivas caçadas.
Escorre-lhes das presas
o sangue, a amarga lágrima:
teu fuzil, caçador
não as encontra n’alma:
ocultam-se na terra,
no coração da carne!

Vibram rasteiro voo
As rapinas rapaces
nas caves inundadas
de fumo, álcool, escarro.
Na órbita das órbitas,
Roçam balofas asas;
Com duro bico imundo,
Picam luar e graça;
E devoram, com gula,
Meretriz e pederasta.

Na época do cio,
As rapinas rapaces
Aninham-se nos versos,
Espojam-se nas camas,
Toldam, em cada espelho
As virgens e os rapazes,
Alarmam o silêncio
Das furtivas passadas
E exibem um lençol
De poluídas pragas!

Plo tempo que não cessa,
As rapinas rapaces
Pairam sob a cabeça
De crua divindade.
Nada as destrói. Existem
Como hóstia nos altares
E adornam-se de pomba
E cravam-se de farpas
E gemem e suplicam
E morrem e renascem.

Aviso de extermínio,
As rapinas rapaces
Apontam-se com pedras,
Lumes, lixos, espadas
ou beijos repetidos
ou águas perturbadas
ou a mulher azul
ou o brinco de prata
ou o aço do braço
e o cristal da garganta!

Quanto é impuro e atroz
As rapinas rapaces
Arrastam para o ninho
Onde me encontro e canto.
Meu lirismo se afoga
Em palavras..., palavras...
Atinjo a extrema forma!
Destruo-me de imagens!
E mordo, com seis dedos,
O ventre da verdade!


António Manuel Couto Viana, Relatório Secreto, Lisboa, Verbo, 1963.

Ana Cristina César. Este Livro


Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do
Coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two
Total tilintar de verdade que você seduz,
Charmeur volante pela posta, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

Ana Cristina César.

Ana Hatherly. Casamento do Céu e da Guerra



Não, meu caro Blake
Esta não é, como a tua
Uma guerra mental
Para as cósmicas acrobacias
Que atravessam o fogo 
Das tuas fantasias
A acção heróica
Que outrora seduzia
Agora é um puro teste
E o campo de batalha
Visto de longe
de cima
de muito alto
É pura geometria
No rectângulo do scanner
As novas armas que cruzam nossos céus
Caem sobre a terra
Distraidamente
Errando o alvo
Enquanto os corpos desencarnam
À sombra das destruídas pontes da lembrança
Que queres de nós, Doctor Clash?
Que nos dizes lá do alto?
Um cruel pai nos entrega a este conúbio
Atirando a bola
Para o campo do adversário
Onde o árbitro já foi despedido
E vestido de preto
É uma mosquinha
No imenso campo
Verde
Porque a teimosa relva
Continua a crescer
para ser pisada 
para ser esmagada
Porque esse é o seu cruel programa
Do céu
Donde sempre nos veio
O fogo e a água
Continua a vir
O sustento da morte

 Ana Hatherly, Itinerários, Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2003.

Ana Hatherly. As lágrimas do poeta


Um poeta barroco disse:
As palavras são
As línguas dos olhos
Mas o que é um poema
Senão
Um telescópio do desejo
Fixado pela língua?
O voo sinuoso das aves
As altas ondas do mar
A calmaria do vento:
Tudo
Tudo cabe dentro das palavras
E o poeta que vê
Chora lágrimas de tinta


Ana Hatherly, O Pavão Negro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.

domingo, 17 de agosto de 2014

Sunset Boulevard Ode Gente

O tempo, perverso em não existir, conjunto de limões em fuga,
com a sua saia de séculos, a masturbar-se lentamente,
A vir-se Em todas as direcções:
Depois mais rápido moldando a cara dos lavradores
Ofegante na sua vontade circular
Cilíndrico na espera – a subir o Chiado, a descer o Chiado,
A entrar em cada casa, a passear na Afurada – a saber-se coisa-nada
ele
dá-te a mão, Espera,
Pinta frescos na sala, deteora os frescos da sala
tacteia nas tuas costas uma vontade nova, muda essa vontade
cria uma nova e uma nova e uma Nova
Escreve a lápis número 3 na sua sebenta:
“Este país não é para velhos” E masturba-se devagar e
depois Rápido: E adora Cláudio Magris e toda a Antena –
e acorda com Sebald e deita-se com Sebald, viola as filhas da revolução
e é manhã e insónia  a entrar em todas as tabernas
 a tingir de amarelo os calendários Michelin


 a crucificar este, a encher de prazeres aquele, a masturbar-se
 ciclicamente até ser só Vontade de ter passado:
Tempo-Cidade, tempo-cavalo, tempo-proletário,
tempo-homem, tempo-mulher, tempo-camponês que dá a mão, tempo que escreve ensaios, tempo que canoniza  –


 Tempo que chora leite condensado para
cima da Sebenta, com o seu rosto quadriculado que é só medo e está  passado –
 ………………………………………………………………………………………………………...
Tempo que é União e fala por nós, que tenta chorar mas só lhe sai musgo dos olhos, musgo fresco e verde como o que cresce nas fontes de Raguzza, que dão uma água carregada de ferro (Resta-me a Sinceridade e a Saliva de todo o mundo)


***


O Tempo a cavalgar com Zaratustra, tustra tustra, a procurar um efeito sonoro nos seus versos: Em busca deste ou daquele recurso estilístico que dê profundidade à rima imperfeita – a Injectar no peito uma vontade nova, um Sol líquido entre dois seios  que são também montanha, onde descansa o olhar –



 vários olhos que vêm os estorninhos dançarem numa nuvem única, que parece uma cabeça de Medusa, em permanente mutação: Criando novas formas do cabelo, novas expressões no sorriso … Uma nuvem única que faz amor consigo própria, como se fosse com um filho por cima dos Campos de Marte - uma nuvem-estorninho a acompanhar Grieg na subida e  a acompanhar Grieg na descida: Nasceu uma Estrela com batom a mais –

A Torre de Babel, as torres do Aleixo
A torre latina que só espera,
 a doçura do
teu queixo –  À procura da T-mésis  per-fei-ta
Um triângulo com as suas três pontas acesas, que bebe demais e tem medo de cair na entropia, um triângulo-cio com problemas de erecção.

É só doçura a torre latina que cai, Gémea do silêncio e da solidão;

A nossa língua não é esquecida: Evoluirá até à deformação perfeita –
O Tempo a acender todos os interruptores da Calábria, a fechar os olhos aos missionários que merecem o descanso: A dar-lhes um sentido porque todas as coisas devem ter sentido, seja ele único ou múltiplo: Seja ele cavalo, cidade industrial, pastor alemão, vidro, sebenta, aguardente, erecção, uma viagem a Nova York, a Grécia Inteira; seja ele vento, microscópio, lixívia de marca branca, rebanho de ovelhas, medo do escuro, uma canção de amigo, uns olhos verdes e tristes – Seja ele fazer obras num
talho, mudar de instalações o sapateiro, o preço da gasolina, o preço do trigo, o que o colhe, o que o come.

                                                    ***

Aqui não há espera: Come o teu queijo gordo e aguarda que o teu lamento não seja eterno ……….  Abre todas as janelas e deixa que o mar entre em tua casa – Nasceu do lodo, a simetria, a Vontade nova, em tudo nova; Não lhe quis dar um nome. Por superstição, deixei-a também flutuar como fumo de um cigarro que desaparece e é só instante. Deixei-a ir acordar os camionistas que seguem por estradas sem curvas, e precisam de dormir … O que nos é estranho é adocicado e múltiplo, o que nos é estranho é o que Entra … Digo Entra, Entrar Verdadeiramente:
Fomos alguém à janela com as suas pernas de cimento, fomos o pão negro que comia, um país na direcção do vento: O meu trabalho é partir diamante com a boca e encher de calmantes toda a Escócia e a gente austral. O meu país é só vento e aproxima o bem do mal: O meu país faz compotas de petróleo cristalizado, compotas de moral e de cimento que acordam os seus filhos pela manhã, compotas que indicam uma rota nova, que pedem boleia aos camionista, que têm medo de não passar bem a mensagem – É sua missão passá-la …  Dizem - Bom dia! – A este e aquele que passa, que tiram o chapéu educadamente; Que abrem os seus corações aos estranhos nas estações de comboio. Compotas que desejam mesmo um bom dia a este e aquele viajante e só esperam que a sua rota seja perfeita.



***

Espero que alguém se deite comigo, e não saiba já se está acordado ou a dormir e que a fronteira entre a vigília e o descanso seja só um novelo com que brinca um gato, em tudo exílio e olhos verdes, um gato negro que entra e sai das torres latinas. Um gato com o sonho Americano e a Dormir por si adentro.
Manter vivas todas as Frentes e velar para que nunca se apaguem – Calcar um triângulo de espera - gelatinoso como o cancro da mama - Um Triângulo que incomoda os séculos, um triângulo que minga quando as pessoas se abraçam: um triângulo que acorda e cavalga, um triângulo que sabe três línguas e assassina por trás. Um triângulo-Solidão.


                                                           ***

Em métrica antiga abrimos todas as portas para que o rio passasse, negro e gorduroso no seu leito, a dizer que o país não se mete em sarilhos; em cada esquina um tétrico coro canta. Em cada esquina essa perda de cabelos dourados, wireless latino e agudo, entra em todos os jardins, come os teus figos maduros, Quê?
Com uma flor na lapela que é o seu lamento,
A criar estilos, a passear o cão, a ouvir o concelho de todos, a dançar reggaeton




O Tempo a ouvir Sitiados
A talhar a pedra -  a ser já só pedra e dados, a construir sólidos telhados num labirinto guloso
……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………….

O Coro tétrico canta:

Tudo é febre e mudança
Panteão e virilha a arder,
Tudo é promessa líquida que muda,
 e manequim a ferver

Tudo é perspectiva múltipla e
nos exige a atenção,
Tudo é língua, tudo boca,
Ode como um cão!

Esculpe-me o cabelo, o sexo e o antebraço,
Recheia de chocolate os ouriços do mar, Dá-me a solução num único abraço,

Adoça e esculpe-me os limites: Faz deles, nenhum.


*******

Acende um Farol em cada praia. Não esperes os navios. Entra em todos os seus porões sem aviso -  Recheia os capitães de Susto – Enche os Porões de riso e espasmo… Penteia-os com gel de golfinho. Sempre estive perto da loucura, se não fui ela própria, sempre quis ter bigodes púrpura e ser só a chuva lá fora –

Nunca quis ser um poeta, só quis ser um navio em chamas: Um navio violado pelo seu tio, todas as manhãs e todas as tardes, um navio que à noite lê Bataille -  Um Navio que se afasta dos outros navios se não tiver cuidado, um navio que só quer ser ponte, 
limite e União.
 Um navio que com os seus óculos de Sol, escreve na sua rota:  - Não existe o que se escreve nas rotas -
Um navio que mesmo assim escreve e insiste em escrever, seja no osso de uma namorada morta, seja no computador, seja em rolo de papiro, em pergaminho, em papel, em folha de gelatina, em mármore, em porta de casa de banho, em quadro (pode ser com unhas ou com dentes) em areia molhada, no braço ou  nas costas em tatuagem, num deserto mexicano, num campo relvado, a chantilly num bolo de chocolate, no lodo, na lama, no gelo com patins, na cerâmica, na argila, no fogo, desenhando um rasto de gasolina, com urina num ladrilho seco – Não interessa o suporte, mais ou menos perene, ele só prova a nossa inocência, a nossa necessidade de partilhar -  A literatura só pode ser União …………… Um navio que escreve rápido no ar e em fumo de cigarro




(são precisos bons reflexos e ante-braço forte) – A LITERATURA TEM DE SER, É UNIÃO.

Nunca quis ser um poeta, sempre quis ser um espelho colocado no centro da Austrália, sempre quis ser a “fome de gente” que os espelhos têm -  Pequenos fios dourados, Guardar uma coisa qualquer, um hipermercado, um segredo, proteger essa coisa dos lobos; Ser vários cangurus espalhados pelo deserto reflectidos na minha cara fosca, de um e do outro lado, uma cara fosca que é só deserto espelhado carregado de nuvens vermelhas no vidro e na sede de ter Muitas Línguas -  Deserto Compositor a Criar um Requiem em Braille para que os cegos cantem uma Osana  Perfeita – Para que os cegos a vejam multiforme a Afastar todas as nuvens carregadas – Para que a Fuga seja só ficar – Deserto a vestir as suas cuequitas vermelhas, a olhar para mim, espelho que não dorme porque abre todas as  gavetas, todas as vontades para tirar de lá meias de lycra – Sou só a vontade dos teus olhos: A Escócia a abrir trincheiras cor-de-rosa, A África a sonhar com um incesto – Em tudo Maior –
A calçar as All-Stars -  A jogar playstaition com a boca cheia de limão* Deserto a cavalgar, a abrir portas – Não interessa a escolha do caminho, mas a intensidade com que se o percorre, seja ele um ou em tudo múltiplo e comprido. Deserto a abraçar deserto, deserto a espalhar-se, vermelho na perda por deserto e deserto, deserto com sede de pessoas.





………………………………………………………………………………………………………...
Nunca quis ser um deserto, sempre quis ser um espelho ou um conjunto de limões _ Se fosse uma mulher, paria um espelho de espuma – Sei que a espera é o próprio Inferno, senão o Diabo Inteiro, sou o arquitecto de um labirinto:


Comer o labirinto
Sair
Ficar dentro – O Arquitecto é uma sombra e quer-se perder e espalhar pela praia ao fim da tarde, Criar a Sua Perda, um labirinto doce com muros que são folhas de gelatina, um arquitecto que só te quer a ti, todas as saídas e todas as entradas. A mais doce ária que é o azeite negro a escorrer pela boca de um paralítico. Esculpe-me o cabelo, o sexo, o antebraço, dá-me um abraço triplo, tira-me todo o ar, dá-me todo o Ar:
 A noite com as suas cuequitas apertadas uiva por Maiakovsky,
a língua da noite adormece os pescadores

………………………….Gosto de te ver sorrir[1]…………………………………………


                                                          


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O Riso é o Gerador Único do Universo,
só ele, quando, tudo o resto falha, permite que as estrelas,
(infanticidas por natureza), se mantenham vivas e não cortem as suas pontas,
Que as ligações frágeis não percam vida e se extingam até à anorexia, perdendo luz e força, ou se arrebentem por dentro sobre o seu próprio eixo desatinado (desatinando para aqui e para ali) Só o Riso é Deus, só ele cavalga e Molda verdadeiramente as caras,
só ele cria luz e espelhos de espuma, só ele goza a poesia, só ele fica sozinho, só ele dá vida.
Quem escreve “O Fim da História”, mais não faz do que começá-la. Sou um recurso estilístico a olhar-se ao espelho, a beber chá verde pela manhã, a empapar o cabelo em gel …


 Sou a vontade, em tudo malhada, de te ver sorrir*
………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………






Lambi o sexo a um relâmpago de virilhas acesas
os seus pintelhos tornaram-me a boca da cor do azeite,
alguns engoli e escorri para os pulmões, vi o relâmpago a lavar os dentes e a cair por cima de uma biblioteca

a literatura (a primeira morte) só serve para unir – os fios que usa são dourados,
é também dourada a sua paciência e a sua vontade de conhecer o inferno.


Ode em mutação, poema recheado de vento, poema que cavalga e é lusitano - Que é só sede e é só vento, (vontade de rir de tudo) -  Poema em rima cruzada a atravessar todos os rios, relâmpago a guiar numa auto-estrada em direcção ao sul – Poema a ouvir Belle Chase Hotel com a boca cheia de cerejas negras – Ode que canta um país que não quer amanhecer, e que é brisa e triste lamento, poema que é olhos teus e se alimenta de riso. Ode cão, Ode cimento.


Sempre quis ser uma cidade industrial escocesa que Turner não conseguiu pintar, sempre quis ser o acordar dos operários  que calçam as suas ceroulas, afastam o medo (Criação Absoluta e único Motor de tudo), Todos os mails não enviados que recheiam a Rede de pontas gelatinosas e fazem explodir as estrelas – De tudo o que deve ser dito com o palato aceso.



Ode Gente, Ode canção
Ode lixívia que limpa uma campa
Ode-saia e alexandrina na rima, ode com dentes podres
 viciada em cocaína – Ode Gente dentro de Gente, Ode cantina,

Ode canção, perfeita no gesto – Ode hospedeira da Easy jet, Ode-gente que chove, Ode-Nuvem que tapa e destapa as cidades Belgas, Ode a abrir os frascos de mel todos, a meter-te pirilampos nos cabelos, a acender de escuridão a noite – Ode que chora quando morre o seu amigo, Ode que brilha quando morre


 – O Mundo começou agora e já está na sua varanda de Susto uma rapariga com a sua saia carregada de vermelho – Ode Saída a encher os pulmões de relâmpagos - Um país Ocidental que nasceu numa paralítica dança em construção.
Ode tinta num copo de espasmos, Ode de boca ao lado que precisa de um amigo,
perversa na fuga e na chegada,

- O amor é como carne …


[1] Grafitti na Travessa de Cedofeita.


O mundo não existe, o mundo é a luz.

Raúl Brandão, Os Pescadores (1923).


sábado, 16 de agosto de 2014

Joseph Conrad. Situação Limite


Tinha-lhe chamado  Ivy – Yedra – pelo som da palavra, e obscuramente fascinado por uma vaga associação de ideias. E ele queria que a rapariga se mantivesse junto do pai como torre de força; esqueceu assim, enquanto ela foi criança, que pela natureza das coisas ela elegeria, provavelmente, ir para outro sítio. Mas o homem amava a vida o suficiente para que mesmo esse acontecimento lhe produzisse certa satisfação aparte do sentimento íntimo de perda.


Joseph Conrad, Situação Limite.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

João Rios. Infância


 como pela nudez das mãos
os seus pés
calcavam com mais certeza
de remo
a navegação incerta do mundo
e aprimorando a bolina dos olhos
arrancavam da pobreza
os sargaços de medo
que as cismas de deus
não sabiam calar
                     

João Rios, Aprendizagem Balnear, 2013.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Cecília Meireles. Serenata



Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.

Cecília Meireles.

Pedro Sena-Lino: Cemitério de Brecht


a minha infância é um animal deserto roendo as escarpas de Deus
ouço-a respirar a luz consciente
ainda da sombra cegueira que montanha os dias
procuro aquele que nasceu ontem de agora
é um movimento sem mãos
somos separados por um corpo mas unidos por uma cidade
somos a interferência da luz antes da luz
e eu quero despedir os olhos mas a cegueira sou eu
projecto-o contra os muros da cidade
há quem nunca mais tenha voltado de si mesmo
ouve-me e regressa-me
a minha respiração dói mais que os meus pés
nos mares de ruas levantadas
no acto físico de andar na pedra o que foi o coração
mil vidas antes todas ressuscitadas
sinto a recordação da minha própria vida
a rasgar a devolver a reter o próprio coração
a vida é uma água de pedra
bebo-lhe a chuva de luz
vejo-me devolvido o rapaz maior que o seu corpo
um rosto perdido entre movimentos suspensos
e todas as coisas que pisamos esgotados de ilusões
numa lápide que foi água triturada
a sobreposição de corpos quebrados
no coração dos olhos um ser que se amou
há milhares de sentimentos atrás
e o futuro a construir-se bombardeadamente do imperfeito
vejo-o-me
no centro de todas as ruas ressuscitadas
avenidas do que há de ser em jamais
e esquinas do impossível erguidas com o que afoguei no coração
uma cidade nasceu um homem


Pedro Sena-Lino, Material Angústia, Maia, Cosmorama, 2010.

Partilhado a partir de: Poems From The Portuguese

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Constantin Cavafy. Círios

  
Temos à frente os dias do futuro
como uma fila de velas acesas –
quente e vivas e douradas velas.

Ficam atrás os dias passados,
fileira triste de velas sem chama:
ainda sobe fumo das que estão mais perto,
vergadas pelas frias que já se apagaram.

Eu não quero vê-las: tanto me entristece o seu ar de agora
como relembrar o fulgor antigo.
Olho à minha frente as velas acesas.

Não vou voltar-me nem vou ver num arrepio
como cresce tanto a fileira escura,
como é tão veloz o apagar das velas.

Bruno Béu.


I.                    
Organonon[1]

a mão manifesta: quando
manifesta esconde. Azul
pelo vitral meia manhã tanto
pelo lado esquerdo, como
direito, a luz. por um segundo
olhava-a nas mãos. Suspenso
(no centro da simetria) ele tocava
um órgão alto. mas nesse instante, só
as mãos tocavam: sem ele
(ele via). por cima dos seus ombros, muito mais
do lado nascente (afinal meia manhã) vinha pelo vitral, o
azul nas mãos: sem ele. nenhuma vontade, como se
tudo já fora feito. música por si. As mãos nada
agarravam, tocando em tudo
só um som: o sopro longuíssimo
de um órgão alto. e lá atrás
do som, do êxtase, vitral, da simetria
escondido, só um mesmo movimento
de um homem pequeno no fole.

II
[relato posterior, já claro quanto ao local da morte]

A Joaquina Paes[2] hoje ainda
colocou as meias verdes, pela
manhã cedo (pouco antes
tinha saído para o banho) junto
do roupeiro claro, e alto: entre
o espelho quando se entra,
e ao longo, e larga («No princípio
era desfeita») a minha cama.

III
[nota de João torrêncio bompasto ao seu singular falecimento]

Morri hoje. Não posso dizer
muito mais de quem morreu:
fui eu.

Bruno Béu, in Meditações sobre o Fim: Os Últimos Poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012.




[1] Texto encontrado junto ao seu corpo nu, ainda molhado e oleroso.
[2] Sua empregada de longos anos.