sexta-feira, 19 de junho de 2015

Rosalina Marshall


ALTAS MADRUGADAS FRIAS

os dois amantes não sabem o que é ter família

param num café qualquer
capuletos escondem-se atrás das árvores
um dia as árvores morrerão também
e a noite furiosa
em passos largos
tomará a avenida da república
e na passadeira
esperaremos que tudo passe


Rosalina Marshall, Manucure, Lages do Pico: Companhia das Ilhas, 1ª edição, 2013, p. 14.

Partilhado a partir de meia-noitetodo o dia.

Rosalina Marshall

VELOZ FAÚLHA ATMOSFÉRICA


atrás dos comboios que passam
não fica nada
o ar que lá estava
lá fica
porta invisível
eternamente chiando

Rosalina Marshall, partilhado a partir de Bibliotecário de Babel.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Allen Ginsberg


A supermarket in California



What thoughts I have of you tonight, Walt Whitman, for I walked down the
streets under the trees with a headache self-conscious looking at the full moon.

In my hungry fatigue, and shopping for images, I went into the neon fruit
supermarket, dreaming of your enumerations!
What peaches and what penumbras! Whole families shopping at night! Aisles
full of husbands! Wives in the avocados, babies in the tomatoes! --- and you,
Garcia Lorca, what were you doing down by the watermelons?
I saw you, Walt Whitman, childless, lonely old grubber, poking among the
meats in the refrigerator and eyeing the grocery boys.
I heard you asking questions of each: Who killed the pork chops? What price
bananas? Are you my Angel?
I wandered in and out of the brilliant stacks of cans following you, and
followed in my imagination by the store detective.
We strode down the open corridors together in our solitary fancy tasting
artichokes, possessing every frozen delicacy, and never passing the cashier.
Where are we going, Walt Whitman? The doors close in an hour. Which way does
your beard point tonight?
(I touch your book and dream of our odyssey in the supermarket and feel
absurd.)
Will we walk all night through solitary streets? The trees add shade to
shade, lights out in the houses, we'll both be lonely.
Will we stroll dreaming of the lost America of love past blue automobiles in
driveways, home to our silent cottage?
Ah, dear father, graybeard, lonely old courage-teacher, what America did you
have when Charon quit poling his ferry and you got out on a smoking bank and
stood watching the boat disappear on the black waters of Lethe?

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Maria Sousa


despi devagar o calor de dizer o teu nome
no silêncio do quarto
o aconchego de se ainda voltasses
abre-se em palavras surdas
depois de improviso percorro a solidão
ao espelho
como se, ao olhar muito, te visse
preso na pele dos dedos
inacabado e à deriva nos meus olhos


Maria Sousa, Exercícios para endurecimento de lágrimas, Lisboa, Língua Morta, 2010.

Inês Dias

MENINA CALÇANDO A MEIA
[Estufa-Fria, 1966]

Não te mexas.

O futuro é perder o equilíbrio,
cair até bater no fundo
de uma insónia hora a hora
interrompida para respirar
à superfície da luz.

Não te mexas, ainda.

Não hesites, não assustes o sonho
pousado em teia sobre ti,
não agites as águas.
E talvez a vida se deixe
ficar à margem
com os seus dias armados de pedras.

Inês Dias, Da Capo, Lisboa, Averno, 2014.

sábado, 6 de junho de 2015

Constantin Cavafy


Círios

Os dias do futuro estão em frente a nós
como uma longa fila de círios acesos.
Dourados, quentes, vivos, pequeninos círios.
Os dias do passado ficam para trás,
uma triste fileira de apagados círios:
ainda fumegantes os mais próximos,
os outros frios, derretidos, recurvados.
Não quero vê-los: essa imagem fere-me –
dói-me lembrar a luz que foi a deles.
Olho na frente os meus círios acesos.
Não quero voltar-me e ver, horrorizado,
quão rápida se amplia a fila escura,
como se multiplicam os que se apagaram.

Constantin Cavafy, 90 e mais quatro poemas, Coimbra, Centelha, 1986.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Clarice Lispector


É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar-me plenamente ? É uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.


Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações), Lisboa, Relógio D’Água, 2012.

Clarice Lispector


Ângela, eu também fiz meu lar em ninho estranho e também obedeço à insistência da vida. Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima ordem de comando.

Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações), Lisboa, Relógio D’Água, 2012.