domingo, 27 de dezembro de 2015

Prece Navajo

Caminhar em Beleza


Hoje eu saio a caminhar...
tudo que é desnecessário vou deixando para trás
serei assim, como eu era antes,
sinto uma brisa suave refresca-me todo o corpo
sinto que o meu corpo é todo feito de luz
e a felicidade acompanha sempre o meu caminhar
Nada poderá impedir-me de caminhar na beleza
Enquanto caminho assim...
vejo a beleza diante de mim
vejo a beleza atrás de mim
vejo a beleza abaixo de mim
vejo beleza acima de mim
vejo a beleza dentro de mim
vejo a beleza ao meu redor
Belas são as minhas palavras
Eu sei que posso caminhar na beleza durante todo o dia
Através das temporadas retornando para casa,
na beleza eu posso caminhar
Na trilha marcada com os grãos de pólen,
na beleza eu posso caminhar
Com o orvalho molhando os meus pés,
na beleza eu posso caminhar
Com a beleza diante de mim, eu posso caminhar
Com a beleza atrás de mim, eu posso caminhar
Com a beleza abaixo de mim, eu posso caminhar
Com a beleza acima de mim, eu posso caminhar
Com a beleza ao meu redor, eu posso caminhar
Com a beleza dentro de mim, eu posso caminhar
e mesmo com o passar dos anos
num rastro de beleza, estarei sempre a caminhar
vivendo uma nova vida, na beleza irei sempre caminhar

Caminho sempre na Beleza
e a beleza torna-se o meu caminho
Minhas palavras são belas
e meu caminhar também


Prece Navajo.


Angélica Freitas

rilke shake

salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe

Partilhado a partir de Modo de Usar.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Os poemas sobre barcos


Talvez os textos mais perfeitos do nosso tempo estejam a ser escritos na nossa língua e falem do sepultamento dos navios, talvez só possamos falar sobre barcos, de países inteiros que se sentam à volta de uma mesa, de bandeiras que se abraçam.

Talvez só possamos falar de barcos numa cama, nas traseiras de um livro, com o Livro de Cesário Verde como mastro, vela e capitão do olhar, Guardador de Rebanhos todo sublinhado a verde - A minha pátria é a língua portuguesa e a minha família é o meu país – e talvez não haja Portugal, mas sim uma mistura ignóbil de "estrangeiros do interior" a governar-nos e a estropiar-nos o resto do que somos. (Pessoa, Carta a um herói estúpido) - Talvez esteja apenas cruel, frenético, exigente e não querer ver mais sofrimento em nenhuma cara do meu país seja a minha bandeira: bandeira imaterial de cor nenhuma, haste completa, cheia pelo vento quente como uma saia que abana lá em cima. Essa eu abano, com essa eu celebro, a essa eu bebo, essa eu abraço no tempo certo e não deixo cair.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Charles Baudelaire

O Bolo


Eu viajava. A paisagem no meio da qual eu estava era de uma grandiosidade e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa passava-se, sem dúvida, nesse momento em minha alma. Meus pensamentos giravam com uma leveza igual à da atmosfera; as paixões vulgares, tais como a ira e o amor profano, pareciam-me agora tão distantes quanto as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob meus pés; minha alma parecia tão vasta e tão pura quanto a cúpula do céu que me envolvia; a lembrança das coisas terrestres não chegava a meu coração a não ser atenuada e diminuída como o som dos sininhos de animais imperceptíveis que pastavam ao longe, bem longe, na vertente de uma outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro pela sua imensa profundidade, passava, vez por outra, a sombra de uma nuvem, como o reflexo do capote de um gigante voando através do céu. E me lembro que essa sensação solene e rara, causada por um grande movimento completamente silencioso, enchia-me de alegria misturada com medo. Ou seja, eu me sentia, graças à entusiasmante beleza pela qual estava envolvido, em perfeita paz comigo e com o universo; creio mesmo que, em minha perfeita beatitude e total esquecimento de todo o mal terrestre, acabei por não achar mais ridículos os jornais que pretendem que o homem nasce bom — nisso, como a matéria incurável renovasse suas exigências, sonhei descansar da fadiga e aliviar o apetite causados por uma tão longa ascensão. Tirei de minha bolsa um grande pedaço de pão, uma xícara de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos, naquele tempo, vendiam aos turistas para. na ocasião, misturar com a água da neve. Estava cortando tranquilamente o meu pão quando um ruído muito leve fez-me levantar os olhos. Diante de mim encontrava-se um pequeno ser esfarrapado, negro, descabelado, cujos olhos escavados, ferozes e como que suplicantes devoravam o pedaço de pão. Eu o ouvi suspirar em voz baixa e rouca a palavra: bolo! Não pude me impedir de rir, escutando o termo que ele empregava para louvar meu pão quase branco, e eu, então, cortei uma bela fatia e ofereci a ele. Ele aproximou-se, lentamente, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça; depois, agarrando o pedaço com a mão, recuou, rapidamente, como temendo que minha oferta não fosse sincera ou que eu já me tivesse arrependido.

Mas, no mesmo instante, foi derrubado por um outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se poderia tomá-lo por seu irmão gêmeo. Juntos eles rolaram pelo chão disputando a preciosa presa, nenhum deles querendo, sem dúvida, sacrificar a metade para seu irmão, O primeiro, exasperado, agarrou o segundo pelos cabelos; este, por sua vez, segurou o outro pela orelha com os dentes e cuspiu uma pequena quantidade de sangue com um soberbo xingamento em patoá. O legítimo proprietário do bolo tentou enfiar suas pequenas unhas nos olhos do usurpador; por sua vez este aplicou todas as suas forças para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate. Mas, reavivado pelo desespero o vencido voltou a atacar e botou o vencedor por terra com uma cabeçada no estômago. Como descrever uma luta tão feia que durou, na verdade, mais tempo que as forças infantis pareciam prometer? O bolo viajara de mão em mão e mudara de bolsos a cada instante: mas, oh! mudara também de volume; e até que, por fim, extenuados, ofegantes, sangrando, eles pararam por impossibilidade de continuar, pois não havia mais, a bem dizer, nenhum motivo de briga: o pedaço de pão tinha desaparecido, espalhado pelo chão em forma de migalhas semelhantes a grãos de areia, com os quais estava misturado. Este espetáculo havia-me ensombrecido a paisagem e a calma alegria onde se deleitava minha alma, antes de ver esses pequenos homens, tinha desaparecido totalmente; fiquei triste durante muito tempo, repetindo-me sem cessar: “Existe um soberbo país onde o pão se chama bolo, guloseima tão rara que é suficiente para engendrar uma guerra perfeitamente fratricida!"


Charles Baudelaire, in O Splen de Paris.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Rubem Braga: Homem no mar



De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.
Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem andando. Ele nada a uma certa distancia da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.
Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando em uma praia deserta, Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei, duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado o esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros, isto me parece importante, é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem.
É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solitário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando – ” vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que Le nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele atingiu”.
Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.
Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.


Rubem Braga, in Elenco dos Cronistas Modernos.