quinta-feira, 27 de junho de 2013

Enrique Vila-Matas



Portugal parece de verdade, parece outro mundo.


Enrique Vila-Matas, O Mal de Montano.


Que se considere falsa qualquer verdade que não seja acompanhada de risos

Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra

O POEMA DA ÁGUA



A fonte: ninho da água. A água nasce de ser plantada? Ou de pedra que se converte? Ninguém sabe, ninguém nunca viu. O parto da água não tem testemunha: aparecemos sempre depois. E, o depois, já é um ninho onde ela se constitui, emplumando-se ao modo de ser ave.
Assim, ao princípio, ouvimos apenas a água crescer em repuxos. Primeiro, é a liberdade à solta na forma de uma gota que se desprende ora do céu ou do ramo, ora da folha ou de algum beiral. Mais à frente é, já, uma pressa branca de frescura enchendo o ar de beleza. As suas asas transparentes descem, então, ao mundo e ao abrirem-se são os olhos do mundo. O alegre soar do imutável. Para aprender o seu enigma os pássaros aproximam-se silenciosos, e o homem contempla-a querendo sentir toda a sua inocência. Por vezes, também Irrompe na sua quietude. Entra nela e olha-se e abraça-a. E bebe-a para viver a paz da sua saciada sede. Mas é só em dias de sol que, do seu corpo de espuma, a plena luz emerge e faz reluzir, limpo de novo, a criança feliz e rei de tudo o que foi criado.
Quem procure a fonte que escute primeiro essa criança. Só depois rasteire os olhos entre a pedra e a erva. Deixe aí seu olhar pousado até que a alma se sinta molhada e mais que alagada: alaguada, como se diz em Arouca. Verá então como a água a si mesma se enche, abrindo as margens, soltando suas asas. Começa a viagem do rio sucessivo.
O rio: caligrafia da água. Do alto da serra, parece que o rio chove da sua taça branca. Limpo e solene. Mais perto se vê que, nas margens, se empoleira, contagiando-se de terra. O rio ora beija, ora morde a margem. Entre carícia e rasgão, se fazem seus incertos caminhos de amante. Nesse tropel, o leito torna-se assim sotaque da terra, pronúncia da própria vida. Montanhas liquefazendo sua carne térrea. Vales que se oceanificam. Como se o continente fosse natural da água e não lugar de terreno. Às vezes essa caligrafia flui mansa, líquida, diluindo os amargos recantos, consolando as arestas das margens. Outras, funda e espessa, quase imitando a massa. Então, em sua torrente me ensombro. E me duvido: afogar é afundar na água ou soterrar na massa?
Afinal, a fúria é breve. A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida.
O mar: pele da água. A água só despida está completa. Assim, da terra ela se distingue. A terra exige cobertura, construção. Enquanto a água do mar em sua própria pele se aconchega. Em tal nudez, nunca nenhum sulco se abriu, nenhuma ruga se desenhou. É todo um só corpo na ternura da sua própria nudez - a alva ternura que enche o mundo. Quem nunca sentiu isso que apanhe, rapidamente, o primeiro foguetão para o espaço. Aí, no meio de uma torrente de obscuridade e tempo, num ar absoluto de silêncio e esquecimento, basta aguardar pelo matinal nascimento da única cor rodando entre os astros. Como se essa cor fosse o solitário jardim de um perdido cosmos.

Então, é só apontar o olhar para o pequeno planeta azul do pólen de mar. É a mãe do nosso universo que, de um claro recanto do seu corpo terrestre, como um testemunho da fugaz mansão, escreve o nosso poema – o Poema da Humanidade.


Álvaro Couto


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Clarice Lispector


E o que o ser humano mais aspira é tornar-se ser humano ...



Paranóia (1963)


Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação



Roberto Piva


O Guardador de Rebanhos



As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.


Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos.


segunda-feira, 3 de junho de 2013

Thomas Mann



Quando o seu olhar tropeçou com o do rapaz, devem ter-se espressado abertamente nele a alegria, a surpresa, a admiração. Foi nesse instante que Tadzio lhe sorriu. Sorriu-lhe expressiva, confiada e acolhedoramente, com lábios que se abriam lentamente à alegria. Era esse o sorriso de Narciso ao inclinar-se sobre a água; aquele sorriso profundo, encantado, deleitável, que acompanha os braços que se estendem ao reflexo da própria beleza; um sorriso ligeiramente contraído pelo beijo impossível da sua sombra incitante, curiosa e algo atormentada, transformada e transformadora.





Thomas Mann, A Morte em Veneza.