segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Fernando Assis Pacheco: Seria o amor português


 Muitas vezes te esperei, perdi a conta, 
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco, A Musa irregular.

domingo, 21 de outubro de 2018

Rui Knopfli: Mangas verdes com sal


 Sabor longínquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.

Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido, na maré baixa
no minuto da suprema humilhação

Sabor insinuante que retorna devagar
Ao palato amargo, à boca ardida,
À crista do tempo, ao meio da vida.

Rui Knopfli. Memória consentida: 20 anos de poesia 1959/1979.

Chacal: meio-fio


                       Tem um fio de queijo
                         entre eu e o misto quente
                         recém-mordido

                         Tem um fio de goma
                         entre o chiclete e eu
                         recém-mascado

                         Tem um fio de vida
                         entre eu e teu corpo
                         recém-amado

                         Tem um fio de carne
                         entre teu corpo e teu filho
                         recém-nascido

                         Tem um fio de saudade
                         entre eu e você
                         recém-passado

                         Tem um fio de sangue
                         entre a razão e eu
                         recém-partido

                         Tem um fio de luz
                         entre eu e mim
                         recém-chegado

                        Chacal, in 26 poetas hoje. Organização de Heloísa Buarque de Holanda.