sábado, 27 de setembro de 2014

João Miguel Queirós.



Perto do fogão

Ponho a sopa a aquecer num tacho pequeno.
sentado perto do fogão,
pouso os braços na mesa vazia.
Encosto ligeiramente a cabeça na parede
enquanto ouço o som da sopa ao lume.
Passados uns minutos, uma pequena sombra
percorre tranquilamente a parede, mergulhando
na penumbra o relógio, uma factura da E.D.P., o calendário,
a fotografia de família...
A ligeira corrente de ar
que passa perto de mim
leva o meu ouvido na direcção do pequeno rádio portátil,
que toca baixinho, e
deixa-me o outro ouvido
sobre o fogão. Fico à escuta.
Dentro de mim vou remisturando uma música
que desenha no meu espírito imagens,
algumas delas são bem fáceis de visualizar
mas outras são tão simples que se perdem,
deixando-me abandonado no ar,
rodeado de uma luz ligeira e suave.


João Miguel Queirós, in Poetas sem qualidades, Lisboa, Averno, 2002.

João Miguel Queirós.


Lianor

Hoje no elevador descobri o seu nome.
No cartão pessoal, que retirou com cuidado
para não soltar os fios da camisola de lã,
estava escrito à màquina Lianor.

Leonor no espelho do elevador vê pelo canto do olho se está
                                                                         [arranjada.
Ela sabe que por detrás da orelha já não tem uma flor
                                                         [selvagem, e por isso
tem espaço para arrumar o seu cabelo com a mão, como se
                                                                  [o escondesse.
Repara nos seus dedos riscados pela esferográfica que deixou
                                                                          [arrumada
sobre a secretária. Está bonita na sua insegurança.
Leonor é agora tão verdadeira nessa impureza frágil como
a água canalizada, que escondida na parede do prédio
só é relembrada quando falta na torneira.
Leonor em vez de se colocar a meio do elevador vazio
                                                                   [prefere pôr-se,
aconchegada a um canto, tal como faz à noite antes de
                                                                       [adormecer,
de modo a não sentir o resto da cama fria.


João Miguel Queirós, in Poetas sem qualidades, Lisboa, Averno, 2002.

João Miguel Queirós.


 Sumo de Laranja

A tarde fria arrasta-nos para dentro da cama.
Aos poucos deixamo-nos ficar..., por ali.

Fixo a fraca coluna de sol mergulhar pelo vidro da janela
e sustentar-se friamente no soalho silencioso.
As tuas costas flutuam amparadas no colchão.

Lentamente deixas cair o braço para fora da cama.
Sorrio não só por te sentir adormecida
mas também por a tua pulsação ser como uma balada,
- o seu refrão será sempre um refresco -
e as suas melodias ainda que electrónicas
estarão sempre à nossa espera
nos head-phones abandonados
sobre a mesa de cabeceira.


João Miguel Queirós, in Poetas sem qualidades, Lisboa, Averno, 2002.

Filipe Teles


Na gare de Lyon ouço música pop
Não sei o que faço aqui com os
guichets preenchidos de perguntas
                                  Em que lugar?
              Qual o cais para Grenoble?
E espero, como tantas vezes.
Jornais, revistas, sanduíches
Humildes balcões húmidos repletos de publicidade desinteressante
Viagens circulares sem destino, de quem espera
sem correr, sem vontade.
A mulher de verde com óculos escuros
O homem de fato a tentar esconder o coçado do colarinho
O homem de fato a tentar disfarçar as sapatilhas
O de sapatilhas a tentar arrebatar o porta-moedas da mulher de verde
Os gritos da velha que não sabe do marido que está mais interessado na miúda loura
Coca-cola que aqui se diz côcá
Batatas fritas, frites, frites,
E o cheiro imundo a óleo
E espero com os
miúdos que correm para lá do alcance dos olhos.
Os papéis voam-me
São os aviões na gare de Lyon 
À minha frente, enquanto aguardo o autocarro,
lê triste um livro
- verso foleiro, mas o rosto era esse.
Não percebo o que lê.
Triste porque parece
não que tenha a certeza.
Está na idade de ler livros tristes.
Com as mãos a vibrar lentamente sobre páginas antigas
As palavras sussurrando-lhe ao ouvido
Cenas imaginadas, mais ricas do que o próprio texto
Mais húmidas do que a chuva
Ou o balcão imundo
Como se fazer-lhe mal fosse um primário desejo. 
Apetece sair e dar uma boa caminhada entre os autocarros
Respirar o ar puro, ou o fumo do escape,
Ver luz
Sem a voz repetida do anúncio dos cais de partida.
Apetece mergulhar numa queda de água
Bater a espuma nos ombros
E sorrir um verde imaturo.
Mas sou puxado de novo para a gare.
Para a espera em viagens circulares sem destino, com as folhas a fugirem-me,
sem lugar onde sentar,
apenas aquele com ela de frente
segurando o livro como cálice sagrado
sem fingimento
só lágrimas e vibração religiosa. 
Se falasse talvez eu desistisse de a admirar
talvez tudo fosse muito mais normal e a cheirar a óleo como tudo o resto.
Há dois tipos de poetas, os que trabalham com imagens
e os que produzem as imagens. Os últimos morrem por dentro
e nós morremos pelos olhos.
A única forma de estar verdadeiramente a salvo
é ser cego
Uma cegueira que corre em sentido anti-horário
anti-vida que nos entra pelos olhos.
Ou então fechá-los propositadamente sempre que doam.
Quando a imagem fere
e essa dor se mantém intimamente, como um silvo interminável.
Se um dia penso numa cor, verde ou laranja,
não preciso encontrá-la para sobre ela construir um poema.
Mas se a cor, o verde ou o laranja, vem ter comigo,
então posso cegar-me de dor. 
São quase três horas.
Olho-a uma última vez para deixar a ferida por cicatrizar
embutida nos olhos
por dentro
- pelo menos por uns minutos, enquanto me durar a vontade.
Não a deixo falar, não a quero ouvir,
nem mexer. Deixá-la ali quieta é melhor.
A vida é água fria
com menos sabor do que a imaginação
- pelo menos a minha
de onde consigo domar o destino
e despentear a realidade
até ela gritar de prazer.
Deixo-a girar ritmadamente as páginas
sonhando-a como quero
- sem que fale, nem me olhe.
Melhor assim,
sublimada, despenteada, irreal,
quente. 
Na gare de Lyon não há aviões.
Há livros e lágrimas escondidas.


Filipe Teles, partilhado a partir de Enfermaria 6.

Patrícia Baltazar


CARTA DE MAREAR

Não há corpo igual. Não há cheiro nenhum no mundo que colmate o meu vício por ti. Não há tragédia igual. Drama incorruptível.
O tamanho de tudo, encaixe perfeito, a dimensão do conjunto e a distância entre opostos.
O que aporto eu? Flores. Mecanismos para deliciar. Sorrisos repartidos ao pôr-da-lua. Fazer ver a leveza do mundo, afinal. São flores que eu aporto. A minha caneta, o meu lápis, a tua vida no meu caderno-para-sempre. Votos de mar a vida inteira.
Leva-me. Está a ficar escuro. Tenho tudo tão pertinho.
Há uma pornografia íntima nisto nosso. Dá água na boca.
Segura-me. Musa.
Porque a pele.
Porque o rosto e as minhas mãos descendo.
Porque nós.
Não fiques, mas não vás. Avião outra vez. Porque tu.
O meu anel está a arder.
Tudo tão muito e eu a tremer como sempre.
A minha esperança é azul. Propagação. Níveis do Inferno.
Flores de Jacarandá no chão.
Gostava de me decifrar. Perdi o relógio, perdi a caneta, não perdi o anel. Ele arde-me.
Era isso! A faísca. No caos, a faísca. Tu. Não esquecer.
Fazer ver a leveza da tempestade. Até doerem os dedos. Até chorar. Até rir. Até dormir descansada no teu peito azul.
Comer-te.
Orgasmo.
Não esquecer.


Patrícia Baltazar, Catapulta, Coimbra, Do Lado Esquerdo, 2014.
Partilhado a partir de Enfermaria 6

Vindeirinho



imaginando em velhos filmes alugados do vídeo
clube, sereias incendiando o fundo dos oceanos,
bem como  navios e outras  estranhas criaturas da imaginação
mal impressas no papel de impressão cerebral absorvido até à
exaustão com
as máquinas de imagens

a quem te diriges quando estás só e frágil,
a quem falas das pequenas coisas sem nexo como se fossem
grandes tubarões
em filmes de acção

Vindeirinho, Domésticos, Lisboa, Black Son, 2001.

Manuel de Freitas. Benilde ao balcão II


«Dê-me uma menina» - que outra
mais irrecusável maneira
de pedir uma cerveja diminuta?
Pois é, leitor, estamos outra vez
na mais bela praça de Lisboa,
com taberna a condizer.
Benilde, ao balcão, diz que está
com «cara de dores», talvez morra
- diz ela - este ano. O pior
é sempre o sofrimento, ninguém
o duvida, ninguém.

Mas entretanto a morte
entra nesta taberna
vestida de corpo aposentado
- e senta-se devagar, peida-se
devagar, olha-me fixamente,
tanto quanto a miopia lhe permite.
Bebe sôfrega a morte e peida-se
ainda. Não jogamos xadrez,
nem sequer dominó - isto não é
Bergman, é apenas a vida(?),
pouco dada a estéticas.

O amor, talvez o amor, é
lá fora brando, louro e feliz.
Talvez ele, para quem o possa ter
nesta tarde em declínio,
cheio de sol baixo e pombas.
«Estamos perdidos e ninguém nos pode
achar», diz ainda Benilde ao balcão,
mais sucinta, penetrante e pura
do que alguma vez foi ou será
um verso meu ou de outrem.

Razão de silêncio, dirá o leitor.
Eu bendigo a sombra, contemplo-a devagar
no rosto sem estrofes de Benilde ao Balcão.


Manuel de Freitas, Os Infernos Artificiais, Lisboa, Frenesi, 2001.

sábado, 20 de setembro de 2014

Miguel Martins




Miguel Martins, Lérias, Lisboa, Averno, 2011, p. 12.

Miguel Martins. Do Futuro






Miguel Martins, Lérias, Lisboa, Averno, 2011, p. 11.

Bruno Béu


enquanto sonhas, as coisas tremem
como se as desfocassem
lágrimas já preparadas para serem
do sonho o teu real rosto.

acordas, porque as coisas tremem muito
e são quase uma só com muitos lados: o corpo
treme agora bem real com elas. as lágrimas

afinal escorrem. nos jornais
amanhã vão escrever seis graus
na escala do richter
que as mediu não sei bem como.

Bruno Béu, partilhado a partir de There´s Only one Alice.

Beatriz Hierro Lopes


(…) Pedem-me uma biografia e digo-o dentro de mim: a minha biografia é o meu nome, tudo o resto são pausas, virgulações que informam a banalidade congénita de ter nascido. A simplificação absoluta de uma história mora na certeza de pai e mãe, avós e demais família. (…)


Beatriz Hierro Lopes, É quase noite, Lisboa, Averno, 2013, p. 20.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Eugénio de Andrade. Mar de Setembro



Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
Fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
doceis, leves, só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam;
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.

Eugénio de Andrade, Coração do Dia – Mar de Setembro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2013.

sábado, 13 de setembro de 2014


Luis Maffei. Orientação dos Gatos


a Beth e Bethina, gatas

para medir a felicidade de um gato
cortázar
temo
não diz nada. basta
se eu digo
uma aterrissagem,
plano em contrário sabor
ao colapso: é
um gato
o poema nunca
que ensina o caimento,
simétrica mostra ao
saber da planagem, ato
impoluto e inumano
de cair de



Luís Maffei, partilhado a partir de Revista Literária Sítio.

Luis Maffei. Contrariedades



Cruel, frenético e exigente é o
tempo,
poeta,
tu não.
Tu és morto e ele
a mim
arma de armas e bagagens e
instrumentos de fuga rumo
(a morte é depois,
é outra coisa)
ao que dura
pouco
dura
menos que o tempo
próprio fosse
justo fosse e ainda à mão
de um dedo à mão
da parte nova que
do tempo
escorre para o mais longe do
tempo tempo fosse.

E a vocação, poeta,
se a morte é depois, se
é outra coisa
é um tempo vivo e tão vivo
que
a mim
sorve de escombros
de coisa nova
beira uma finda
antes da
finda antes do
tempo antes do
abismo.


Luis Maffei, partilhado a partir de Revista Literária Sítio.

António Botto. Ciúme



I

Venham ver a maravilha
do seu corpo juvenil.

O sol encharca-o de luz,
e o mar de rojo tem rasgos
de luxúria provocante.

Avanço, procuro olhá-lo
mais de perto… A luz é tanta
que tudo em volta cintila
num clarão largo e difuso…

Anda nu - saltando e rindo,
e sobre a areia da praia
parece um astro fugindo.
Procuro olhá-lo; - e os seus olhos,
amedrontados, recusam
fixar os meus… - Entristeço…
Mas nesse olhar fugidio –
pude ver a eternidade
do beijo que eu não mereço.


IX

Não. Continua o teu caminho.
-Abraça e beija aqueles que tu quiseres
porque fico na certeza
de que fui eu quem deu alma
a todos os movimentos
 da tua sensualidade!

Carícias intermináveis,
comprou-as o meu dinheiro!
Inútil!... Guarda os teus braços,
Guarda-os, sim, para o primeiro!...

Deste-me tudo o que eu quis!

Fiz do teu corpo bandeira
na guerra do meu anseio!

Mas sinto que me apeteces
por entre náuseas profundas.

Cheio de lama e de sonho,
ando a ver se encontro a origem
das nossas vidas imundas.
                                                         

António Botto, in Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, (Seleção, prefácio e notas de Natália Correia), Lisboa, Antígona / Frenesi, 2008, (5ª edição), p. 417.