quinta-feira, 23 de junho de 2016

A fazer hoje.


(Variação sobre Eluard)

Escrever um poema sobre a liberdade e vê-lo arder.
Vivo.
Como uma mãe.
Escrever no centro do coração que o amor é o homem inacabado.

Respirar.
Respirar.
Respirar.

Pedir pouco.
tão pouco...
quase nada.

Olhar de frente o sol.
Agradecer.

Olhar de frente a estrela mais pequena.
Agradecer.

Ver um caracol subir um vaso, uma planta, comer uma folha, abandonar a sua casa.
Agradecer que se tem família, agradecer que se tem amigos,
Olhar uma flor roxa fechar-se na noite.
Empurrar a minha filha no baloiço.
Dizer-lhe que nunca tenha medo.
Abraçar a Ale.
Tomar um café quente.

Pedir pouco.
Tão pouco.
Quase nada.
  
Nuno Brito.

sábado, 18 de junho de 2016

Emily Dickinson

Vou dizer-te como nasceu o Sol –
Uma Fita de cada vez –
Os Campanários nadando em Ametista –
As Notícias correndo como Esquilos –
Os Montes desatando os seus Chapéus –
As Tristes-Pias – começando a cantar –
E eu dizendo baixinho, para mim –
«Há-de ter sido o Sol!»
Mas como ele se pôs – isso não sei –
Parecia ser um degrau carmesim
Que meninos e meninas de Amarelo
Estivessem a subir e a subir –
Até que chegando ao outro lado,
Um pastor todo vestido de cinzento –
Erguesse suave as trancas da noitinha –
E levasse consigo o seu rebanho –

Emily Dickinson. Duzentos Poemas. Lisboa: Relógio D’Água, 2014.

Tradução de Ana Luísa Amaral.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

O Desenhador de Sóis XX


O poema ensina o seu coração, o seu batimento, ele é muitas cidades a arderem em desejo; há no centro do poema um sol que irradia para todos os lados, uma afirmação de vida, uma múltipla fonte de luz. As palavras são centros de vibração, elas tocam-se, expandem-se em ondas, elas são estrelas em pleno nascimento, em nascimento continuo, cada olhar sobre elas as faz renascer. O poema é uma constelação que faz acender a linguagem, que a faz viver; A constelação que é o poema faz nascer a palavra a cada segundo, a cada batimento do coração a palavra é nova, ela tem novo sopro, ela é uma nova afirmação de vida, uma nova fonte, uma nova onda expansiva, a cada batimento do coração do poema surge um novo acendimento, (muitas cidades a arderem em desejo), a estação de serviço em mercúrio, o olhar da minha filha. Cada novo olhar sobre o poema cria um novo nascimento, uma aceleração diferente: eu acelero o poema quando o olho, eu o faço nascer. O poema é um animal invencível, ele é a vitória da linguagem. Quando eu afirmo:

O poema ensina o seu coração
e o seu coração é um céu azul.

Eu digo que esse coração é um núcleo que acende tudo o que o rodeia; o poema não pergunta o que é o fogo, ele afirma, ele cria uma comunidade, ele une, ele não para nunca de unir. As constelações comunicam, acendem-se, dançam, cruzam os seus fogos, a sua dança pode ser perfeita e - por essa mesma possibilidade - ela é já perfeita. O animal invencível é a possibilidade mesma da vida, a afirmação mesma da vida. Se o poema nasce em frente a um promontório com Safo ou se ele nasce no meio da rua com Cesário Verde, o que os une é esse nascimento, o mesmo batimento que implica diferentes vibrações, o mesmo início, que implica diferentes processos. O poema ensina a cair no chão ou ensina a rir dessa queda, o poema ensina a ver o outro mas também a ser sempre outro, doutra forma diríamos: o poema faz nascer, o poema faz brotar, o poema multiplica ângulos e nisso é tão humilde como uma raiz ou um semente que leva a vida no seu interior e que só necessita um pouco de água, um pouco de terra, um pouco de luz, uma comunicação (que é também assonância e conversa) da natureza. Tudo aqui é soma, tudo aqui é mudança, acrescento, comunicação, comunhão; união enfim, é disso que falamos quando falamos de poesia, de um abraço com uma geração intemporal, de um abraço com Orfeu, de um abraço com Diógenes; este é o contacto que a poesia inaugura, um gesto que se pretende infinito, um mergulho, um abraço, nisso a poesia parece-se muito ao ato de nadar, de atravessar, de romper, quando escrevo um poema atravesso o teu peito a nada e isso é a minha comunhão, o momento de erguer a cabeça e continuar a olhar o chão, aquele momento de acendimento que se dá antes das grandes viagens. O poema antecede a viagem. Ele dá-se num mergulho de luz, num momento de celebração, de encontro (com o todo e com o mínimo), com a flor que rompe o asfalto, com um mundo que se afirma quando o afirmamos. Este é o mundo, resta celebrá-lo, bendizê-lo, elevá-lo, acendê-lo, esse é o momento poético, o momento de criação de ênfase.

Nuno Brito.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

A. M. Pires Cabral

A Matança

Não penses
que a carne apenas é aquela oca
lívida carcaça
em imóvel galope alucinado,
embarrada numa trave da adega.

Não penses
que o milagre anual da salgadeira
vem sem morte e sem trabalhos. Não:

Contar-te-ei
que primeiro atam o porco em sua loja
com uma corda em torno do focinho
e o arrastam à força para o ar lavado e frio.

Contar-te-ei
que o porco luta e resiste: ora sentado
sobre os quartos traseiros (os futuros presuntos),
ora comicamente no solo as quatro patas
fincando com bravura se defende
da mal-agourada violação. Por fim, cedendo,
colocam-no, ainda contrafeito,
entre roncos, bufos e sacões,
no banco, deitado sobre o lado,
por forma a expor o vulnerável,
comestível coração.

Contar-te-ei
que quando a faca penetra nas entranhas,
qual punhal vingador de antiga fome,
o grito é tal, tão desolado e aflito,
tão humano, tão digno de compaixão,
tão de criatura insultada e indefesa -
que tenho de tapar a mãos ambas os ouvidos
e recuar para os fundos da casa,
onde o rumor mal chegue. Ainda assim,
a voz implorativa é uma cascata,
uma cascata lenta e descendente,
em que o animal se esvai.
Quando calado - o sangue
jorrando impetuoso no alguidar -
é sinal que
         o porco é morto:
                        viva o porco!

A. M. Pires Cabral, in: Algures a Nordeste, 

Emily Dickinson

A minha vida fechou-se duas vezes antes de se fechar –
Mas fica por saber
Se a imortalidade me revela
Um evento maior

Tão largo, tão incrível de pensar
Como estes que sobre ela duas vezes tombaram.
Partir é tudo o que sabemos do céu,
Tudo o que do inferno se pode precisar.



Emily Dickinson.


Tradução de Ana Luísa Amaral.

sábado, 4 de junho de 2016

José Carlos Soares


Não te aproximes tanto
de uma alma em cinzas. Apenas
arde
ou dá-me
do sol estrelas, escuros
fragmentos da mansidão. So tired
of dying
digo, baixinho, amo-te. Digo-o
pela tua boca.

José Carlos Coares: in  Este perder-se, 2011.