terça-feira, 24 de junho de 2014

Rosa Maria Martelo. Transporte

em
chamas

setas, facas de muitos gumes
por mais dilacerar, cortar, rasgar
assim se tem falado do amor. A ferida em flor
disseste, a morte, a morte! em arroubo e transporte
o mais correr do sangue a esvair-se em lentidão: antítese a fogo
frio, tremor e clamor, voz chamando sem nenhum ruído, o chão
ardido em lume repentino, as mãos em voo a nada,    e quase perto
     se infinito.
Assim teremos dito, pelos séculos, todos, muitas vezes repetindo
tempo sobre tempo, um depois de outro, êxtase e lamento
e num momento tudo – e depois, a vinda
e o avesso

por figuras:

o pobre imaginar
que inteiros nos levasse inteiro

e dele não haver regresso
ou desenlace

  
Rosa Maria Martelo, Matéria, Lisboa, Averno, 2014.

sábado, 21 de junho de 2014

Miguel Cardoso. Cesura


é que um dia não nos salva
e não traz nunca um outro inteiro atrás

quando muito um início imperfeito
um inverso nem sequer menos desfeito

será cedo e será tarde
o canto a começar pela ponta
mais lascada

arrancando-a

aos sons da rádio
que insiste em nos lembrar o calendário
e transcreve para sonatas as cotações melancólicas da bolsa

será cedo e será tarde
quando um verso arranca

entre os destroços

e o verso
trava a fundo a meio
e o som derrapa

e o sentido aterra umas centenas de metros depois
num domingo à tarde estamos nós
a jogar às cartas
de aviso de despejo

eis a questão a ser testada neste nosso laboratório
a de abrir
o fechado
e torcer o aberto
pano das horas

e as costuras
do tempo não serão todas desfeitas
nem os nós da matéria espalhados em rede solta

o mais certo é os corpos não serem leves
não se verem
inteiramente livres de gravidade

mesmo Maio é Maio e não é Maio
como aquela polaroid presa também ela pela ponta
por uma mola
à memória ao arame ao ar

ali a revirar-se na varanda

Não nos convencem contudo que os telhados
e a inclinação das telhas nos telhados
e as antenas que restam nos telhados
e as telhas e antenas soltas nesses mesmos telhados
e todos os outros telhados
não virão a dar jeito nos episódios seguintes

e não só isso

haverá na vida dividida em horas
pedaços mal digeridos de uma outra

e certamente

para a sensibilidade das gengivas
e para o desalinho dos dentes permanentes
para a ideia de que isto se resolve com o tempo
e para os gritos de Electra a entrar no metro
para a caca acumulada nos beirais
e para o gesto de picar o ponto
para o casaco que foi ao fim deste tempo para o prego
e para a rosa que floriu no inverno bravo
para a eficiência bruta do travão de mão
e para os rasgões irreversíveis nos sacos de plástico baratos
para os despedimentos em massa à segunda de manhã
e para a troca de pé de apoio antes do click da câmara
para os produtos de toilette descontinuados
e para as escadas de serviço dos hotéis de luxo
para as lendas sobre a ascenção da classe média
e para as caves onde foi morrer gente
para os alicates com que se corta a luz
e para os gritos quando ela volta
para as dores e doçura da auto-ajuda
e para os canos a roncar por dentro das paredes
para os cinzeiros cheios de restos de cascas de frutos
e para o azul dos anúncios de férias low cost
para o passo lento de quem leva as mães pela mão ao médico
e para as histórias de sucesso de produtores de cogumelos de
amarante
para o vidro espalhado no chão das lojas fechadas da baixa
e para os panos de cozinha já muito desfiados
para o dom duvidoso da música para distrair da sede
e para a obsessão mal focada das câmaras de vigilância
para o ferro velho e para o figo verde
para o maldito heraclito e para o fígado já esquisito
para a bateria gasta e para a sombra das acácias
para os esqueletos cobertos de papelitos
onde se anotam os avanços da ciência económica

e até para estes toscos abre-latas com que tento abrir a fruta

haverá certamente para isso
e para os dias
e para os fotogramas riscados
da nossa graça interrompida

outros usos a dar

outros ventos que venham
estoirar estes tufos
de daninhas ardores e desastres

e com uma agulha longa passar por tudo um fio
de fino urro

incluindo a polaroid que voou
onde tinha a minha cara
e algumas árvores a que não subi

É que já não nos lembramos das canções
o que é o menos
nem por isso não cantaremos

mas esquecemo-nos de como saltar muros o que é pior
até para o cantar

e a construção civil está em nítida recuperação
e fazem-se muros
aumentando a nitidez das partes

isto numa altura em que cai a pique a prática do salto à vara
e em desgraça o passo pequenino mas solto dos sonâmbulos

ainda assim virá talvez o dia
em que de uma frase a outra

alguma coisa acabe
uma outra comece

não que espere iluminações
que redimam a vista para o prédio da frente
nem espero estar despachado tão cedo
deste amontoado de mobílias
de gavetas rombas atulhadas de fios

estes metros e metros de serapilheira muito bem dobradinhos

mas ainda sabemos desamparar-nos

Nós os avessos a esta luz
e sim algo sentimentais
a quem disseram que de nada vale
antever os erros ou a soltura

Nós os que com aspirinas esfareladas
nos bolsos umas quantas gravações
piratas de urros de amores antigos
em trampolins com novelos de atrito
em torno do belo canto da gravilha
e eco e pedaços de lixa e fita-cola

antevemos os erros e a soltura

Nós que consultamos bestiários medievais
e notas de rodapé de comentários
a poemas que falavam de bilans, de vers, de billets
doux, de procès, de romances,
à procura de continuar a revolução
curiosamente a partir da cave e do sótão
que o meio estava perdido

A nós, dos papéis dispersos e canções
interrompidas, das mãos
ao alto, das noites mal dormidas
das fotocópias encardidas,
dos inventários de usos vulgares,
futuros, escorregadios,
de sucessivos delírios de extensos quintais
muito misturados, com arame e bichos,

e às vezes algum sentido prático
no que toca a pôr um pé em frente ao outro
e na presente conjuntura

dons desnecessários

e claro de todo sem idade
para estas coisas, ou velocidade
para deslocar ombros como deve ser,
e já respiramos melhor,
como disse

não nos convencem que os telhados
não virão a dar jeito nos episódios seguintes

Não chegarão para tanto improviso
aquando da falta de ar rente ao solo
e nova distribuição de pares para a dança
nas alturas e tarefas delicadas como acender
fósforos raspando-as na barba mergulhada
no copo na mesa bamba à nossa frente
e rodar a saia rodada e fazer da crosta
do pão duro mapas de estradas secundárias,
e reinventar o telescópio, benzer o início
de mais um insucesso ou de mais uma dentada
num queque com um rodopio
e trocar por exemplo de tiques depressa
e outros sobressaltos

Nós que nos juntámos aos puxadores
de alavancas escondidas
por também não sabermos onde elas estavam
que nos entregamos a paixões dificilmente
por via respiratória, e que de alguma maneira
achamos por isso um encanto ter patas traseiras
para o impulso para dentro do dia
a seguir ser mais brusco

e tivemos livres trânsitos em cabelos alheios desprendidos

que empilhámos os nossos livros
como muro entre a cabeça e os nossos pais

e haveríamos de dar de novo as mãos
às mães e aos pais em queda dos telhados

vindos do serviço de periferia
onde foram ouvir tossir
perto de pontes sobre rios estreitos

Nós que assistimos talvez a três crises do imperialismo
e a pelo menos quatro florescências de um novo cinema
enquanto andávamos acima abaixo nos nossos dias  tão diários

Nós que atiramos a poesia toda de um
contra toda a poesia de todos os outros
para ver como lascavam ao certo os pedaços

Nós que fomos a primeira incursão na ficção 
de país documentaristas à solta em Lisboa
e arredores e com vinte e poucos
começamos com um longo travelling
e mantivemos uma ténue narrativa
que funcionamos assim como uma espécie de lupa
mas éramos na essência uma montagem
de dispersas imagens de arquivo

que depois acreditamos que não se podia viver
sem Rosselini ou seja sem quedas sucessivas
em cidades ocupadas pelo meio do arranhar
do preto e branco e que chorámos
por não conseguirmos viver juntos na precisão
de um plano de Ozu e a quem uma fresta
lá ao fundo cortava os pulsos em cinzento aqui
e leve azul ali, e que fomos definitivamente salvos
por dobradiças lassas várias vezes

que não chegámos a ver as contrapartidas
prometidas para o desbotar dos rostos
debruçados adiados anjos nós caídos
fomos preparando versões alternativas
das agulhas curvas de desembaraçar
o som das horas e imitar o som das vespas

para sermos livres da garganta para cima
uma vez porque também
não nos explicaram ao certo
o que fazer com estes pescoços
pouco flexíveis

Vamos às vezes ao fim da tarde à esplanada

Compramos o jornal à sexta-feira
para passar os dedos pelas estreias
e de novo medirmos em mortos
a intensidade actual dos conflitos

Temos preferências na água com gás
E na adequada temperatura do café

Quando dermos pela vida vamos tremer
como frigoríficos depois de breve hibernação

Damos pela vida

E disparamos em flechas após o fecho dos mercados

e afinal não nos recompusemos da derrota
nem da troca da alegria mal parada
pela medida bem medida

e afinal queremos um terreno para erros tenros
e o solo sem dono e extenso
terrain vague para os embalos
à espera dos deslizantes afazeres
dos surtos de fuga dos membros de tarde
do futuro imperfeito dos desarvorados
e o deleite do uso bem ou mal ventilado de correr
no sentido contrário ao autocarro

e afinal queremos respirar alto
até deixar de saber o lugar das coisas

e afinal ainda queremos quase tudo

queremos cortar a linha destes versos


e usamos quando podemos a primeira pessoa do plural 



Miguel Cardoso, in 40XAbril, Lisboa, Abysmo, 2014.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Patrícia Lino


 Rua das Carmelitas

A luz de que falavas
dizias é com ela que a cidade se abre
repara como é com ela que as casas se escutam
dentro da escuridão
porque a luz de que falavas
concluías só existe porque há a escuridão
dos espaços mal iluminados
Não sei exatamente de que luz falavas
quando falas gesticulas muito
Distraí-me
distraio-me sempre
Mas sei que palavras usaste
para falar da luz
e sei que as tuas mãos se moveram em círculos
quando me apontaste as casas
Sei também que pousei os meus dois olhos
na ponta de um dos teus dedos
Disse-te gosto muito daqui
e contei quantos olhares demorou o teu silêncio
Nascemos na cidade certa Patrícia
Não sei exatamente o que isso significa
mas tenho quase a certeza de que inverteste
toda as teorias que há sobre o paraíso
Disse-te nascemos sim
porque uma mulher só não pode inverter
todas as teorias que há sobre o paraíso
são precisas duas
A luz de que falavas
quantos planetas dura a luz de que falavas
Há quantos planetas espero por ti
***


Patrícia Lino, de Enfermaria 6.

Andreia C. Faria

O meu tronco nu

A outra metade seria 
a sereia enrugada, à venda
numa banca do mercado em Samarcanda
A sereia ressequida e embrulhada
em papel de jornal

O erotismo póstumo de uma sereia
a quem levantassem a saia, ou a colhesse
o arpão pela cintura. O meu
tronco nu seria a praia
onde a vinha encontrar um mercador

Anelar, dividida ao estertor
por um marinheiro bravo, ressente-se
a sereia de sémen e suor, mas alicerça o canto

mais acima, na prefloração da pelve
em guelra ou maçã-de-adão,
na várzea isquémica onde morre o peixe
e restolha o sangue como a brisa entre a folhagem 

Retirado de Enfermaria 6


Andreia C. Faria


O outro lembrava a infância com marcas
de sal nos olhos tudo
tem um preço mesmo o que está
por demais perdido tem um preço o próprio
sal tem um preço lera na lombada
das mulheres
Também ele se enrolava e lapidava como
pedra em forma decorativa seixo
que ao mar não doía engolir
ficava a vê-las os dedos dedilhando
a inflexão da noite longa


Andreia C. Faria, De haver relento, Cosmorama, 2008.

Gilles Deleuze, Claire Parnet. Diálogos


SOBRE OS ESTÓICOS, porquê escrever sobre eles? Nunca fora exposto um mundo tão sombrio e tão agitado: os corpos… mas as qualidades também são corpos, os sopros e as almas são corpos, as próprias ações e as paixões são corpos. Tudo é mistura de corpos, os corpos penetram-se, forçam-se, envenenam-se, imiscuem-se, retiram-se, reforçam-se ou destroem-se, como o fogo penetra no ferro e o faz ficar vermelho, como aquele que come devora a sua presa, como o amoroso penetra no amado. «Há carne no pão e pão nas ervas, estes corpos e tantos outros entram em todos os corpos, por condutas escondidas, e evaporam-se juntos…» Horrível a refeição de Tieste, incestos e devoramentos, doenças que se elaboram nos nossos flancos, tantos corpos que brotam do nosso.


Gilles Deleuze e Claire Parnet, Diálogos, Lisboa, Relógio d’água, 1996.


quinta-feira, 19 de junho de 2014

Sofia Carvalho. O Inferno sem Beatriz


Ao Ernesto Sampaio

Hoje ninguém morre
por amor
e a morte quando nos visita
é sob a forma de corda por roer.

Nessas horas a salvação não nos habita,
nem nos cabe, e Deus fica
entre as cordas de um cinto,
anavalhando o sentido.


Sofia Carvalho, in O Amor em visita: Colectânea de poemas sobre o amor, Porto, Poetria, 2013.

Cecília Ferreira. Cataratas


Bati com o nariz na mesa do café
ao perguntar ao tipo se eras tu.
Disse que não, mas pensei que era o teu humor a espraiar-se
no tampo para me cair sorrateiro e quente no vestido azul
e insisti no riso
interrompido por um
guarde o sorriso para si que eu não lho pedi.
Tremi como quem arranca a primeira asa da mosca
e fiquei mosca, amputada e fácil de esmagar.
Quando nos damos em excesso ficamos pequeninos.
Todo o meu corpo encolheu e me estranha.
As horas passam menos tu.
Estou cega, tateio por ti.
Casaco preto e cabelo castanho.
Casaco preto e cabelo castanho.
Não sei se és pintor, poeta, palhaço,
se usas calças rotas, boné ou biqueira de aço.
Nunca liguei aos parênteses.
Só preciso que me encontres e me ames.
Só isso. O resto ganha-se e perde-se numa corrente d’ar.
Não te atrases com as credenciais.
Esperar faz-me ficar feia.

Cecília Ferreira, in O Amor em visita: Colectânea de poemas sobre o amor, Porto, Poetria, 2013.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Arnaldo Saraiva: Limite


por que haveria o verso de acabar aqui
  e não                            aqui
                          e não
                                               aqui

      e não aqui e não aqui
                e não em

                                                        ti


Arnaldo Saraiva, IN, (1983).

Amadeu Baptista: Nâzim Hikmet, em frente, de novo, ao Monte Uludag


(para Vitor Silva Tavares)

Aquela que traz a lua maravilha-me,
venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara
– fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha
clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso,
e sei que não há carcereiros que me tolham o passo,
nem prisioneiros que não possam libertar-se.
A ronda cinge o cárcere, o meu povo, no seu intenso
turco, tenta erguer-se da infrene dominação que o subjuga,
mas, entre os muros, o meu sonho vem dessa lua
que esta mulher me entrega quando ponho
os meus olhos nos seus e escuto o que me diz
como se estivesse a ouvir o coração.
Escuto-a e uma peça de prata toca a minha cabeça,
e assim ando a monte, assim a noite
é um vasto vidro despolido onde transito
quando o silêncio cresce nas masmorras de Bursa
e embranquece cada um dos meus cabelos por esta sedição
inominável. Não, não sou um fugitivo a correr as sete partidas do mundo
– quem me vigia sabe que sou um poeta
e que todas as palavras me pertencem, da Anatólia a Hatay,
de Istambul a Adana.
Ah, em Adana vi o cavaleiro turco
em busca dos mortos, de espada desembainhada, erguia
a bandeira vermelha e perguntava pelos gregos,
os gregos que dormem na terra da Anatólia,
a acusá-los sardonicamente,
porque se deitaram
ao lado dos turcos que morreram
na terra onde as magnólias florescem
sobre os telhados das casas.
Ali recitei o Corão, balouçando-me nos joelhos, para a frente
e para trás, depois do muezim entoar o azan
– que os meus pés descalços, a sua planta calosa,
mostrem por onde andei e como, em menino, ouvi
canções de embalar, poemas mevlevis, e deixei de ser crente
na esperança divina, porque tudo o que faço está para além
de qualquer recompensa, para além do temor do castigo,
e trago comigo um revólver carregado na algibeira das calças,
de que sou incapaz  de me servir, enquanto canto.
Pela causa posso cegar, ficar coxo, estropiado,
submergir pelos piores pesadelos, aguentar os nevões e o frio
da avenida Tverskoi, discutir com o amigo Maiakovski a envergadura dos versos,
ir de Tiflis a Kars, depois a Gálata e Pera, depois a Ankara, a enfrentar
o Tribunal Especial, e ser condenado ao segredo,
essa cúpula de alvenaria no meio da prisão com grades de ferro na janela,
mas sem vidraça, onde o chão é de cimento e neva dentro da cela,
e onde, a qualquer momento, posso voltar ao grande exílio,
posso voltar à avenida Srasnoi, onde bato
os pés sobre a neve e Fédia Seis Dedos, da bacia do Volga,
regateia comigo o tamanho dos peixes como se regateasse
o tamanho da fome dos seus doze anos sujos e esfarrapados,
a quem, com um sorriso, ofereço o meu último cigarro,
a lembrar-me da nudez das coisas, da raiva,
das mulheres de Alepo e de Salónica,
para, por fim, trocar com ele o pequeno peixe
que lhe dei em sigilo por outro um pouco maior.
Vá, agora, pergunta-me quem sou, afirma comigo
que há anjos incaptáveis e que nas estrelas arde o surdo
movimento do mundo, diz que nelas arde o implausível, e aos camaradas
de Esmirna nada mais resta do que a corda em que os enforcaram e os ossos
brancos pelo flagelo da amargura, enquanto eu me pergunto
como se enlaçam os destinos, que rumor magnético das pedras
nos une às platibandas que crescem sobre o mar – dentro das pedras
há pulsações, entranhas vivas, sedimentações de sangue, de humores,
tal como nos homens há alegria e tristeza, e nostalgia,
mas nenhum tirano há que me pacifique,
nenhum déspota com o seu gorro escarlate,
a sua cara estúpida,
as suas 800 concubinas.
Silencioso e concreto, o cavaleiro vermelho avança,
venha ele de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara,
e eu, tal como ele, estou em toda a parte, a abrir buracos nas rochas,
a abrir buracos nos buracos, a abrir o peito
à afeição peculiar que me adensa o sangue
e mantenho em favor de quem vai comigo,
e olha a lua,
e sofre da fome universal
dos que nada mais têm que um desconcertante sonho de pão
na aridez implacável do deserto,
o pão que pertence à maioria, mas a maioria não tem
– digo que estamos de costas, que disparam sobre nós quando estamos
de costas, que o tapete está deitado de costas quando dorme,
que a casa, adormecida, está deitada de costas sobre o mundo,
digo que o mundo está adormecido de costas,
tal como as acácias estão adormecidas de costas na calçada,
tal como os olhos das janelas, dos telhados, da luz oblíqua que os toca,
tal como aquela que traz a lua  e me maravilha,
venha ela de onde venha, com a falha clara
na fieira dos dentes a iluminar-lhe o sorriso.
Não nascera ainda e já a miséria me era insuportável, a vaidade asinina
seguia os carreiros de gravilha da Europa, ia Abdul Aziz,
senhor do Império Otomano, ao lado de Napoleão III, em Paris,
e eu via tudo, Abdul Aziz cevava-se
ao passar revista aos vinte e cinco milhares de tropas
no Arc d’Étoile, com as roupas europeias verde-escuras e o fez rubro
na cabeça, com a sua fraqueza, a sua idiotice, a sua ignorância, filho
de uma mãe prepotente, mas chefe de uma grande realeza,
bastando-lhe mover um dedo para mover marinhas e exércitos,
com o poder de vida e de morte sobre milhões, a comer, a dormir
e a espreguiçar-se, enquanto um exército de cobradores de impostos espoliava
o povo, a esborrachar-lhes as caras contra as barras, porque aqui é assim,
um homem rouba um pão e cortam-lhe a mão direita e a perna esquerda,
e pregam-no na praça para servir de exemplo.
Agarro-me ao concreto, estou a nascer,
os meus ossos estão, ainda, em formação,
quando tiver dentes porventura alguém mos partirá,
esta viagem é extravagante, não se sabe
o que decide a sorte de um poeta, serei um cão, uma raposa, uma cegonha,
nunca se sabe o que será um poeta quando alguma coisa falta ao mundo,
e, entretanto, passam uns anos na minha juventude e morre-se,
morre-se de verdade em Gallipoli,
entre os cadáveres dos turcos só há o ar pestilento,
só há as moscas grossas e verdes num enxame terrífico
a sobrevoar os corpos contorcidos, apodrecidos,
enquanto o que resta é só a ignorância dos poderosos,
a sua ganância, a sua sede incomensurável de domínio,
a acomodarem-se em sedas, a encomendar gráceis iluminuras
de minaretes e príncipes, de palmares e princesas,
enquanto a artilharia sobe de tom, sobe sempre de tom,
com os francos e os ingleses a morrerem-nos à frente dos olhos,
embora a nossa derrota pareça iminente e todos acabemos a tirar piolhos
das costuras das fardas e, para os cadáveres que se amontoam,
haja e não haja setenta e duas virgens para nos dar prazer.
Assim aconteceu mais tarde, aquando da invasão dos gregos,
que tudo querem de nós, querem, afinal, Bizâncio, o seu antigo mundo,
querem negócios estes negociadores implacáveis
que são capazes de negociar com quem lhes assassinou a mãe,
querem terras, um nunca acabar de terras que dizem pertencer-lhes,
o incêndio a alastrar em 1922, a fuzilar-nos:
a dominação fará de nós não mais que estrangeiros
na terra onde nascemos, uma terra de sultões e de paxás,
uma terra de linces desapossados de tudo, enquanto, nas trincheiras,
cheira a cadáveres, cheira a cordite, cheira a merda, cheira a mijo e a suor,
e chega ao auge o desejo de matar, nas granadas de estilhaços, no zunido
das balas, no baque das bombas, no seu ronco mortífero, enquanto a realeza,
longe da planície de Divrin, longe dos soldados sem rosto que só o cavaleiro
de gorro vermelho sabe quem sejam, se banqueteia com as escravas
circassianas, georgianas, eslovacas, núbias, e fumam o nagrilé,
e mandam que lhes preparem o banho, o chá de maçã, o café preto,
enquanto Salónica está perdida, e está perdida Esmirna, e Creta, e o mar,
e o mais que nos roubarem.
Eu ardo, afirmo-vos que ardo, pressenti que só se ardêssemos
a treva se dissiparia,
de cabo de guerra a paxá Musfatá Kamal será Atatürk,
herói dos Dardanelos, pai dos turcos, genocida dos arménios,
envio-lhe uma carta para que seja revogada a injustiça que sobre mim recaiu
enquanto homem e cantor resistente, mas não me sento à sua mesa redonda,
serei poeta continuadamente,
a cela é um vasto território de quatro metros quadrados de betão,
um universo para o meu poema e, por isso, todas as noites invento
um sopro para a noite, um sopro ardente,
e nunca há noite,
e sei que não há carcereiros que me tolham o passo, nem prisioneiros
que não possam libertar-se, ainda que me queiram enforcar,
quem sabe se numa árvore igual à de Guernica, calcinada
pelos bombardeiros alemães, ou algum arbusto
rasteiro de Adis Abeba imolado pelos italianos – se escravo sou,
digo que todos os escravos são virtuosos, pedintes, pregoeiros que sejam,
cavaleiros marcados pela guerra e pela morte sob todas as formas,
embiocados na máscara mortuária que a todos consome
e que nenhum dervixe rodopiante pode harmonizar, um poeta,
pese embora a malária e a disenteria, cantará para sempre.
Ah, o negrume da minha cela é luminoso,
os mortos mordem-me os pés, vejo-lhes o coração a bater
nos peitos destroçados, vejo as feras que os consomem e tomo partido,
estudei na universidade comunista e vou na grande onda
que ulula, e berra, e vocifera, e canta – levanto-me pelos mortos,
invectivo as forças obscuras, castigo a infâmia para além do inimaginável,
e o impensável é a queimadura da violência, o rufo das granadas, a rajada
das armas, o estrondo dos tanques, os esquadrões em linha como arganazes
domesticados a degolar à baioneta, a amontoar cabeças em cestos de vime,
a lançar gasolina sobre uns quantos camponeses capturados,
uns quantos deserdados,
a tocar-lhes o lume, a violentar-me,
a mim, que nunca estive na guerra,
mas nela estive todos os dias da minha vida.
Vá, afirma comigo o que ambos sabemos,
diz que és a nuvem que eu sou, que o comboio nos leva,
que batemos às portas consecutivas do mundo,
que depende de nós repartir o pão que não temos,
que os melhores dias são os que ainda não chegaram,
que é fácil esperar pela morte, assim como é fácil
abrir as grades pelo lado de dentro, ainda que pelo lado de dentro,
tal como pelo lado de fora, se possa erguer
um arrazoado de pistolas automáticas e haja carrascos
por toda a parte –  até dentro de ti, montanha.
Ah, aquela que traz a lua maravilha-me,
venha ela de Salónica, de Esmirna, ou de Ankara
– fico-me a olhar-lhe a boca, aquela falha
clara que no fio dos dentes lhe ilumina o sorriso:
e estou em greve de fome, a modelar na prisão
as estacas que se plantarão no globo, e sei que as crianças
levantarão os estores para que a luz circule à superfície da terra,
e com o luar chegue a luz da humanidade;
os estores, tal como as estacas, são negros, tal como a luz que aqui há,
mas em Bursa aguardo como um cargueiro ancorado,
virão as crianças e entregar-lhes-ei o coração,
este pobre coração talvez derrotado pela arteriosclerose,
a nicotina, as dores de fígado, o infortúnio,
mas sempre vermelho como uma maçã, sempre vermelho
nas mãos das crianças que me sorriem do mundo,
crianças já nascidas e crianças por nascer,
enquanto eu morro em Moscovo,
com o luar no rosto, essa luz
que entretece a manhã e vem de ti, amada.



Amadeu Baptista, Cadernos de Poesia nº 2, Lisboa, Enfermaria 6, 2014.

Isaac Asimov: Prelúdio à Fundação


Não é preciso prever o futuro. Basta escolher um futuro – um bom futuro, um futuro útil – e fazer o tipo de previsão que alterará as emoções e reações humanas de tal forma que o futuro que se previu acontecerá. Vale mais fazer um bom futuro do que prever um mau.


Isaac Asimov, Prelúdio à Fundação, Lisboa, Livros do Brasil, 1998.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Manuel António Pina


Farewell Happy Fields

I.
Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética Funerária, armadores, casa fundada em 1888
A esses sítios acorrem então, aflitíssimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio entre
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta

e tudo está acabado, até a tua respiração
na cama ao meu lado


(…)


Manuel António Pina, Farewell Happy Fields, Porto, E.A.,1993, 

domingo, 15 de junho de 2014

Daniel Faria: Conserto a Palavra

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio 
Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
Ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa
Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em exame

Ela não se come como as palavras inteiras
Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza
Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a

Daniel Faria, Homens que São como Lugares Mal Situados

Carlos Alberto Machado


Fodidos e Resignados

Resignação é haver proletariado
sem ditadura e o socialismo
na gaveta dos administradores
dos bancos que emprestam o dinheiro
do estrangulamento futuro dos teus filhos
que maltratam os filhos dos outros
e os dos outros os teus em directo na tv
que é para parecer liberdade
e democracia que é aquela coisa
misturada com sangue coalhado
a feder na imensa vala comum
do “não me venhas dizer
Que preferias o fascismo e a ditadura?”
preferir por preferir prefiro
um longo pano negro
a tapar a vergonha de ser
deste país de homens e de mulheres
forrados a pele de “antes assim que”
rotinados republicanos laicos e socialistas
empanturrados d’hinos e bandeiras menstruadas
a disfarçar o medo
e a fingir o futuro
fodidos
todos.

Houve aqui alguém que se enganou?
Naturalmente.

A veia aberta da revolução
entulhada com dez milhões
de telemóveis.

Revolução a vir? Claro:
McDonald’s ou Morte!

Carlos Alberto Machado, in 40XAbril, Lisboa, Abysmo, 2014. 

sábado, 14 de junho de 2014

Herman Melville


O fim de uma viagem longa e perigosa não é mais do que o princípio de outra e logo de outra, assim incessantemente até ao fim, são assim intermináveis e intoleráveis todos os esforços terrestres.


Herman Melville, Moby Dick.

Claudio Magris


 Toda a Narrativa é um paradoxo, um jogo de espelhos sem fim


Claudio Magris, Danúbio.


Pedro Eiras

A sociedade não pode despedir a poesia, a poesia é que pode despedir a sociedade


Pedro Eiras, A Lenta Volúpia de Cair.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Raúl Brandão (sobre Guerra Junqueiro)

Março de 1904

Veio a Lisboa acompanhar, por solidariedade, os lavradores do Douro o poeta
Guerra Junqueiro. É outro homem, que perdeu talvez em exterioridades mas ganhou em
funda emoção. Tendo-se-lhe um dia deparado universais interrogações no caminho;
tendo encontrado frente a frente, ao meio da vida, ideias abaladoras, que só o homem de
génio pode encarar sem o pavor e o deslumbramento que o grande mistério comunica –
as raízes do universo –, ele mudou de rumo, tão simplesmente como se praticasse o acto
mais banal da existência. Sendo já um dos maiores poetas da Europa – quis ser também
um santo... Durante anos procurou como Fausto o segredo da Vida no fundo dos
laboratórios. E noutra fase do seu espírito decorativo, tendo entrevisto, pelo poder do
génio, novas veredas a tentar, seguiu-as, fazendo experiências que a ciência de hoje
plenamente confirma.
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Guerra Junqueiro está na mesma: alguns fios brancos a mais na grande barba de
santo, começo de calva amarelada no alto da cabeça, chapéu baixo, uma simplicidade de
trajo que vai bem com a simplicidade verdadeira ou fictícia da sua alma. E sobre isto os
olhos terríveis que nos fitam e nos adivinham até ao fundo. A conversa é prodígio que
evoca, ilumina, toca em todos os problemas da vida, dando-lhes uma grandeza e novos
aspectos que entontecem.
Fala-se a propósito dum livro, e ele diz, não palidamente, nem decerto com as
inexactidões com que reproduzo, o seguinte:
– É um livro interessante. O autor conseguiu deixar faiar a parte de inconsciente
que cada um de nós traz consigo... Porque, meu amigo, a porção do infinito que cabe a
cada homem é exactamente a mesma. O camiseiro ali defronte e um homem de génio
têm na alma idêntico quinhão. Somente, o camiseiro não consegue encontrá-la nem
pode exteriorizá-la. Porquê? Porque só pensa em camisas. O homem é o universo
reduzido... Que cada um pudesse deixar-se narrar – e teríamos a mais maravilhosa
história do Mundo.
E como incidentemente se refira à ciência, ei-lo que se desvia por outro
esplêndido caminho:
– As últimas descobertas modificaram completamente a ciência. Fm um
terremoto. E eu entrevi isto mesmo: há anos que chegara ao seguinte resultado: –
radiação universal e desassociação dos átomos. Fiz experiências, que me deram
resultados incompletos, procurei homens de ciência, que não me quiseram atender. Um
dia vim de propósito a Lisboa falar a Sousa Martins e expus-lhe as minhas teorias.
Ouviu-me... Quando me fui embora, encolheu decerto os ombros. E, no entanto,
passados anos, vejo confirmado experimentalmente tudo o que eu previra... Que quer?...
Faltavam-me, como compreende, os meios de verificação. Precisava de factos.
Cala-se um momento e depois continua:
– Hei-de publicar, depois da Oração à Luz, que sai brevemente, uma série de
memórias com os resultados dessas experiências. A vida – é o Amor e a Dor. Procurar
as suas leis, eis tudo. Seguir-se-á a minha teoria filosófica. Adivinhei todo este
terremoto que se deu n1timamente na ciência. Hoje, a matéria não existe: já a definem –
associação de energias. Que é feito dos materialistas? A ciência futura será portanto o
estudo de energias. Por último publicarei uma introdução à ciência, visto não poder
escrever essa obra: seria a revisão dos trabalhos de Spencer – a tarefa de toda uma vida.
– E tem muitos documentos?
– Tenho tudo pronto. Necessito apenas de encontrar a forma precisa, a forma
matemática, para exprimir as minhas ideias.
Incansável. É de ferro. Pequeno e mirrado, passeia horas e horas a conversar...
Não conversa – monologa.


                                                       Raúl Brandão, Memórias Vol. I.

Raquel Nobre Guerra: Há dez anos que escrevo o mesmo poema

Há dez anos que escrevo o mesmo poema
no mesmo café.
Esta ideia arrumada nesta cadeira triste
todos os dias no mesmo sítio.
Até que me venham bater à porta
ando meio distraída nisto. 

Falam-me da barbárie e dos seus irmãos brutos
mas ninguém falou ainda da flor de Coleridge
nem das pernas melancólicas dos meus amigos. 

Exceptuando isto penso no imenso com os dentes.
Penso num serviço de chá e numa porta de serviço.
Penso num chão absoluto no petróleo e na lixívia.
Penso na tua cabeça enunciativa e és um Rolls
às nove e meia da noite para toda a parte comigo. 

Exceptuando isto talvez não se morra e ninguém
desça à guerra e ao medo senão pelos livros.
Penso no amor e exceptuando isso está frio
e a mudança de hora e a jukebox
e contar-te os meus medos porque penso nisto há dez anos
que penso nisto. 
Cruz na porta da tabacaria e o teu cabelo
cortado à escovinha.
Há dez anos que desconfio do mesmo poema 

forma inteira do homem para diante
                                                e de diante para o abismo  

E poder ser livre e fumar na cama
com a excitação de arder numa linha. 

É que Sócrates nunca escreveu.
Milton ao menos fingia.
No fim de contas caía bem.
Um Kropotkin e uma bica.

E convicção ser do teu signo.
Porque uma coisa nos atraía.
Fome não era adição.
Erecção não era cinismo.
Porque havia motivo para risos. 

Tu nunca te atrasaste.
Tu nunca te mataste.
Porque enfim não mentiste 
que há dez anos que escreves o mesmo poema 

tu que só queres o sol
para descê-lo para descê-lo
ilha dos amores

no mesmo corpo no mesmo casaco
apoiado à esquerda do meu braço. 

Raquel Nobre Guerra, Cadernos de Poesia nº 2, Lisboa, Enfermaria 6, 2014.