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a minha infância é um animal deserto roendo as escarpas de Deus 
ouço-a respirar a luz consciente 
ainda da sombra cegueira que montanha os dias 
procuro aquele que nasceu ontem de agora 
é um movimento sem mãos 
somos separados por um corpo mas unidos por uma cidade 
somos a interferência da luz antes da luz 
e eu quero despedir os olhos mas a cegueira sou eu 
projecto-o contra os muros da cidade 
há quem nunca mais tenha voltado de si mesmo 
ouve-me e regressa-me 
a minha respiração dói mais que os meus pés 
nos mares de ruas levantadas 
no acto físico de andar na pedra o que foi o coração 
mil vidas antes todas ressuscitadas 
sinto a recordação da minha própria vida 
a rasgar a devolver a reter o próprio coração 
a vida é uma água de pedra 
bebo-lhe a chuva de luz 
vejo-me devolvido o rapaz maior que o seu corpo 
um rosto perdido entre movimentos suspensos 
e todas as coisas que pisamos esgotados de ilusões 
numa lápide que foi água triturada 
a sobreposição de corpos quebrados 
no coração dos olhos um ser que se amou 
há milhares de sentimentos atrás 
e o futuro a construir-se bombardeadamente do imperfeito 
vejo-o-me 
no centro de todas as ruas ressuscitadas 
avenidas do que há de ser em jamais 
e esquinas do impossível erguidas com o que afoguei no coração 
uma cidade nasceu um homem | |
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Pedro Sena-Lino, Material
  Angústia, Maia, Cosmorama, 2010. 
Partilhado a partir de: Poems From The Portuguese | 
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Pedro Sena-Lino: Cemitério de Brecht
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