segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Três Poemas de Afectos em Ré Menor. Maria Fernanda Morais.




No fundo dos mais belos olhos

eu vislumbro o redondo planeta

mãos que se abrem e deixam nascer

em cada falange um poeta

no fundo dos mais belos olhos

as balas serão palavras

e armas serão canetas

apontadas por poetas

no fundo dos mais belos olhos

não há medo nem terror

as letras são inocentes

cada verso uma flor


***


Dei um beijo

A um beija-flor

Pôs a flor na lapela 

Voou e fugiu de mim

Desgostosa eu chorei

Desamparada caí

Outra ave abraçou-me

Beijou-me o bem-te-vi!

Se virem duas aves felizes por aí a esvoaçar, a dar às asas pelo ar,

somos nós, vamos para Taipus-de-Fora!


***


Partilhemos o canto das aves

nas sombras dos jacarandás

o antes e o depois

do verão e do inverno

o meu abraço terno

aos plantadores das árvores

troncos plenos de flor

que nos dão o colorido

ao cego e ao mendigo

perdidos 

de amor 


Maria Fernanda Morais. Afectos em Ré Menor. A Casa do Livro, Janeiro de 2022.


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

When I am among trees: Mary Oliver



When I am among the trees,

especially the willows and the honey locust,

equally the beech, the oaks and the pines,

they give off such hints of gladness.

I would almost say that they save me, and daily.


I am so distant from the hope of myself,

in which I have goodness, and discernment,

and never hurry through the world

but walk slowly, and bow often.


Around me the trees stir in their leaves

and call out, “Stay awhile.”

The light flows from their branches.


And they call again, “It’s simple,” they say,

“and you too have come

into the world to do this, to go easy, to be filled

with light, and to shine.”




Mary Oliver.


Construção: Ondjaki


construção da casa [e do interior da casa]

construção de uma fogueira [e do fogo, e da chama, e das cinzas]

construção de uma pessoa [do embrião aos livros]

construção do amor

construção da sensibilidade [desde os poros até à música]

construção de uma ideia [passando pelo que o outro disse]

construção do poema [e do sentir do poema]


[há qualquer coisa de «des» na palavra construção]


desconstrução do preconceito

desconstrução da miséria

desconstrução do medo

desconstrução da rigidez

desconstrução do inchaço do ego

desconstrução simples [como exercício]

desconstrução do poema [para um renascer dele]


construção é uma palavra

que causa suor

ao ser pronunciada.


penso que esse seja um suor bonito.


Ondjaki.


Fala amendoeira: Carlos Drummond de Andrade


Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista deparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e, ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador de seu azedinho. É como se o cronista, lhe perguntasse – Fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

--- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

--- E vais outoneando sozinha?

--- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

--- Somos todos assim.

--- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

--- Não me entristeças.

--- Não, querido, sou tua árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outonize-se com dignidade, meu velho.

(Carlos Drummond de Andrade)