sábado, 10 de agosto de 2024

Paulo Freire: Pedagogia da Esperança

O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica, etc., que nos estão condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e refaz. Não sendo um a priori da história a natureza humana, que nela se vem constituindo, tem na vocação referida, uma de suas conotações.

É por isso que o opressor se desumaniza ao desumanizar o oprimido, não importa que coma bem, que se vista bem, que durma bem. Não seria possível desumanizar sem desumanizar-se tal a radicalidade social da vocação. Não sou se você não é, não sou , sobretudo, se proíbo você de ser.


Paulo Freire. Pedagogia da Esperança (um reencontro com a pedagogia do oprimido). Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2021. (pp. 137-138)


Mário Cesariny: Faz-me o favor


Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.


Mário Cesariny


Clarice Lispector: Se eu fosse eu

 Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir. 

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

(Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo)

If I were another: Mahmoud Darwish



If I were another on the road, I would not have looked

back, I would have said what one traveler said

to another: Stranger! awaken

the guitar more! Delay our tomorrow so our road

may extend and space may widen for us, and we may get rescued

from our story together: you are so much yourself ... and I am

so much other than myself right here before you!


If I were another I would have belonged to the road,

neither you nor I would return. Awaken the guitar

and we might sense the unknown and the route that tempts

the traveler to test gravity. I am only

my steps, and you are both my compass and my chasm.

If I were another on the road, I would have

hidden my emotions in the suitcase, so my poem

would be of water, diaphanous, white,

abstract, and lightweight ... stronger than memory,

and weaker than dewdrops, and I would have said:

My identity is this expanse!


If I were another on the road, I would have said

to the guitar: Teach me an extra string!

Because the house is farther, and the road to it prettier—

that’s what my new song would say. Whenever

the road lengthens the meaning renews, and I become two

on this road: I ... and another!


Mahmoud Darwish, "If I Were Another", The Butterfly’s Burden.