PARAMNÉSIAS
DE UM FABRICANTE DE GLOBOS
Antigo marinheiro
português
Os
anos 30 estavam a acabar, o mundo parecia incrivelmente velho e incrivelmente
novo. O que digo era que já não esperava nada dele – o Absurdo não podia
tornar-se mais absurdo, o belo mais belo (assim pensava eu – ardeu ardeu e
ardeu … e agora: apagado demais tudo / aprendi a inibir as minhas emoções, ardi
demais e agora extinto demais. Filho de um magnata de Bilbau, agora com 40
anos, na casa do pai. Não esperam nada de mim e eu não espero nada de mim até
que um novo absurdo, a banalidade que é a morte, o meu pai, poucos dias depois
de voltar a casa de um cruzeiro: Ao passar pela ilha de Cápri o médico de bordo
foi chamado, mas não era para tanto, este primeiro acidente vascular cerebral
não foi tão forte, um aviso, controlou um pouco a bebida – o médico de bordo
tinha uma permanente atenção a ele. Depois o segundo AVC. Em poucos meses eu e
a minha irmã recebíamos uma quantidade absurda de dinheiro. Ele nunca nos tinha
faltado, mas agora estava ali nas nossas contas.
Já
no dia do funeral, o sócio do meu pai falou comigo e com a minha irmã, fez-nos
a proposta da compra dos 60% da empresa. Feito, 5 dias depois no notário
livrava-nos da empresa e recebíamos o pagamento:
Sonho
já disponível (Acabo de picotar essa memória: não parecia minha, veio a mim,
apontei-a) Parecia um sismo extremamente calmo: previsível (a memória que não
era minha) e a tive, a suspensão natural – choque e previsão que o anula:
memória: brinquedos antigos – que não eram meus – uma cara, a expressão que me
dá vontade de rir – não o reconheço e aí está nítida – Nem sempre são más, só
que não são minhas e daí o impacto natural de não as reconhecer.
Dos
20 aos 25 anos não recordo muitas coisas: foi a época dourada da minha amnésia
– pus chumbo em cima – inevitavelmente não era a solução, não dá para soldar
esse campo, melhor olhar para ele, agora de longe - resolvido, disponível agora
o Presente: a Dimensão Completa do Presente; o que eu fui não é o que sou.
Identidade = entrar… Não consigo expressar
isto doutra forma. Querido diário de uma menina japonesa dá-lhe o Presente…
Obrigada por ele.
Aos
42 anos crio uma fábrica de Globos
Aos
44 – (Quero contar a minha história – defino um lapso de tempo – dos quarenta
anos até agora, mas com ela cruzam-se todas, o meu lapso de vida que queria relatar
torna-se insignificante, sou atravessado pela história de todos) A interrupção
e o bloqueio natural leva-me à apatia, e então volto a uma obsessão momentânea,
entrego-me – faço uma pequena biografia de um grande empresário da indústria
alimentar: esse homem que acabo de inventar: aos 44 anos ele fez aquilo (criou
a fábrica de chocolates El Torito,
por exemplo) … Anestesia temporal, mas de todos os sentidos, voltar a virar
para fora então: uma solução e sim, tão fácil. Ocorre-me a ideia de mimetismo.
Há muito tempo comecei um texto que se chamava Mimetismo Animal.
A Rainha do Presente
O Filtro
Hoje
tento perceber a natureza desse abandono – começar … sim, isso comecei, até ao
bloqueio. O meu lapso de vida – talvez no diário da menina japonesa – talvez
ela atravessada por memórias que não são suas escreva (dos meus 40 aos 44 anos
por exemplo que:
Hoje
entrei na fábrica de globos – Ali ao fundo o armazém: os produtos acabados, o
antigo funcionário põe as etiquetas com o número de série (um pouco abaixo do
polo norte) Hoje sinto os pés frios – uma memória (o cheiro do papel azul que
vai representar o mar, é para essa secção que me dirijo, depois para a secção
de corte, com os pés frios) Acaba de me vir à ideia – que importa? Um homem que
sobe uma avenida com muita gente, à sua frente vai outro – ele imagina o que
está a ver aquele que vai à sua frente (um novo campo de visão) bem percetível,
mas agora esta focalização exterior, ver a rua de cima e nesta
despersonalização da sua perspetiva se mimetiza, abre um outro campo. No meu
escritório tomo café, daqui vejo toda a fábrica: os 32 funcionários, alguns
escondidos atrás de um bloco que não vejo, um pequeno muro, uma pequena
oficina, separados por madeiras brancas. Cada um com a sua função. Há duas
semanas admiti um novo funcionário, tem à volta de 20 anos. Como os artesões
antigos, tem um mestre, na secção de corte, está ainda a aprender … noto que
quer aprender, entretanto é ainda um moço de recados, sinto o orgulho do mestre
antigo, ensina-lhe isto, ensina-lhe aquilo – passa-me agora a tesoura – leva
isto ao Jorge – E logo passo pelo corredor central e ouço o Mestre dizer para o
rapaz, está tudo por hoje, vai à tua vida – Ressoa-me a última frase, finjo não
ouvir (como se aqui dentro o rapaz não tivesse vivido) e agora vejo-o sair,
montar a moto estacionada lá fora, pôr o capacete – e agora ele vai à vida
dele? Aqui – neste lapso de tempo que não foi vida – onde eu ainda estou.
A
minha memória cruza-se com a de um limpa-neves e com a de um missionário africano,
mastigo o pão com ele. Sinto-me sozinho. saio da fábrica e olho diretamente
para o sol, nunca o tinha visto tão grande. Imagino a expansão da luz e sinto
também no momento de os fechar a amnésia do sol, novo mimetismo, regresso ao
gabinete com mais forças. O bolo alimentar da memória na garganta do pregador.
O fermentar açucarado como uma nova conquista, sinto que não necessito mais
nada do que esta memória açucarada:
A
amnésia latina e aguda do meu passado português, passam rápidos os frescos da
consciência, nítidos, não salta nenhum, nítidos painéis de consciências que não
são minhas, paramnésias do passado e do futuro: mais do que imagens fios de
cabelos, uma queda de água como uma queda de sol. Lembro-me agora bem que o
cristianismo inventou o passado e tenho agora recordações rápidas do futuro.
Nuno Brito
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