segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013


PARAMNÉSIAS DE UM FABRICANTE DE GLOBOS
Antigo marinheiro português



Os anos 30 estavam a acabar, o mundo parecia incrivelmente velho e incrivelmente novo. O que digo era que já não esperava nada dele – o Absurdo não podia tornar-se mais absurdo, o belo mais belo (assim pensava eu – ardeu ardeu e ardeu … e agora: apagado demais tudo / aprendi a inibir as minhas emoções, ardi demais e agora extinto demais. Filho de um magnata de Bilbau, agora com 40 anos, na casa do pai. Não esperam nada de mim e eu não espero nada de mim até que um novo absurdo, a banalidade que é a morte, o meu pai, poucos dias depois de voltar a casa de um cruzeiro: Ao passar pela ilha de Cápri o médico de bordo foi chamado, mas não era para tanto, este primeiro acidente vascular cerebral não foi tão forte, um aviso, controlou um pouco a bebida – o médico de bordo tinha uma permanente atenção a ele. Depois o segundo AVC. Em poucos meses eu e a minha irmã recebíamos uma quantidade absurda de dinheiro. Ele nunca nos tinha faltado, mas agora estava ali nas nossas contas.
Já no dia do funeral, o sócio do meu pai falou comigo e com a minha irmã, fez-nos a proposta da compra dos 60% da empresa. Feito, 5 dias depois no notário livrava-nos da empresa e recebíamos o pagamento:

Sonho já disponível (Acabo de picotar essa memória: não parecia minha, veio a mim, apontei-a) Parecia um sismo extremamente calmo: previsível (a memória que não era minha) e a tive, a suspensão natural – choque e previsão que o anula: memória: brinquedos antigos – que não eram meus – uma cara, a expressão que me dá vontade de rir – não o reconheço e aí está nítida – Nem sempre são más, só que não são minhas e daí o impacto natural de não as reconhecer.

Dos 20 aos 25 anos não recordo muitas coisas: foi a época dourada da minha amnésia – pus chumbo em cima – inevitavelmente não era a solução, não dá para soldar esse campo, melhor olhar para ele, agora de longe - resolvido, disponível agora o Presente: a Dimensão Completa do Presente; o que eu fui não é o que sou.

 Identidade = entrar… Não consigo expressar isto doutra forma. Querido diário de uma menina japonesa dá-lhe o Presente… Obrigada por ele.

Aos 42 anos crio uma fábrica de Globos
Aos 44 – (Quero contar a minha história – defino um lapso de tempo – dos quarenta anos até agora, mas com ela cruzam-se todas, o meu lapso de vida que queria relatar torna-se insignificante, sou atravessado pela história de todos) A interrupção e o bloqueio natural leva-me à apatia, e então volto a uma obsessão momentânea, entrego-me – faço uma pequena biografia de um grande empresário da indústria alimentar: esse homem que acabo de inventar: aos 44 anos ele fez aquilo (criou a fábrica de chocolates El Torito, por exemplo) … Anestesia temporal, mas de todos os sentidos, voltar a virar para fora então: uma solução e sim, tão fácil. Ocorre-me a ideia de mimetismo. Há muito tempo comecei um texto que se chamava Mimetismo Animal.

A Rainha do Presente
O Filtro

Hoje tento perceber a natureza desse abandono – começar … sim, isso comecei, até ao bloqueio. O meu lapso de vida – talvez no diário da menina japonesa – talvez ela atravessada por memórias que não são suas escreva (dos meus 40 aos 44 anos por exemplo que:
Hoje entrei na fábrica de globos – Ali ao fundo o armazém: os produtos acabados, o antigo funcionário põe as etiquetas com o número de série (um pouco abaixo do polo norte) Hoje sinto os pés frios – uma memória (o cheiro do papel azul que vai representar o mar, é para essa secção que me dirijo, depois para a secção de corte, com os pés frios) Acaba de me vir à ideia – que importa? Um homem que sobe uma avenida com muita gente, à sua frente vai outro – ele imagina o que está a ver aquele que vai à sua frente (um novo campo de visão) bem percetível, mas agora esta focalização exterior, ver a rua de cima e nesta despersonalização da sua perspetiva se mimetiza, abre um outro campo. No meu escritório tomo café, daqui vejo toda a fábrica: os 32 funcionários, alguns escondidos atrás de um bloco que não vejo, um pequeno muro, uma pequena oficina, separados por madeiras brancas. Cada um com a sua função. Há duas semanas admiti um novo funcionário, tem à volta de 20 anos. Como os artesões antigos, tem um mestre, na secção de corte, está ainda a aprender … noto que quer aprender, entretanto é ainda um moço de recados, sinto o orgulho do mestre antigo, ensina-lhe isto, ensina-lhe aquilo – passa-me agora a tesoura – leva isto ao Jorge – E logo passo pelo corredor central e ouço o Mestre dizer para o rapaz, está tudo por hoje, vai à tua vida – Ressoa-me a última frase, finjo não ouvir (como se aqui dentro o rapaz não tivesse vivido) e agora vejo-o sair, montar a moto estacionada lá fora, pôr o capacete – e agora ele vai à vida dele? Aqui – neste lapso de tempo que não foi vida – onde eu ainda estou.
A minha memória cruza-se com a de um limpa-neves e com a de um missionário africano, mastigo o pão com ele. Sinto-me sozinho. saio da fábrica e olho diretamente para o sol, nunca o tinha visto tão grande. Imagino a expansão da luz e sinto também no momento de os fechar a amnésia do sol, novo mimetismo, regresso ao gabinete com mais forças. O bolo alimentar da memória na garganta do pregador. O fermentar açucarado como uma nova conquista, sinto que não necessito mais nada do que esta memória açucarada:

A amnésia latina e aguda do meu passado português, passam rápidos os frescos da consciência, nítidos, não salta nenhum, nítidos painéis de consciências que não são minhas, paramnésias do passado e do futuro: mais do que imagens fios de cabelos, uma queda de água como uma queda de sol. Lembro-me agora bem que o cristianismo inventou o passado e tenho agora recordações rápidas do futuro.

Nuno Brito 

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