Personagens Secundárias
Escreves o livro da tua vida com a boca colada a um
manancial. O teu coração está em Madrid, algures entre a promiscuidade
da selva e a tristeza do arcanjo. Fazes um esforço insano para pareceres
invariável, grato, trivial, nem que seja por um instante. Aprendeste a
falar mais alto. A dobrar as consoantes, a abrir as vogais. Aprendeste a
conviver com a elipse, a olhar com profundidade para os vazios narrativos que
arrastam o fedor e a fidelidade pelas paredes do teu pequeno quarto
alugado e até o teu desespero se tornou elegante e sociável, depois de
teres provado a sua ineficácia total. Sempre que o narrador te obriga
a caminhar pelas ruas movimentadas da cidade, sem outro propósito que
não o da pura locomoção, tu fazes ligeiras digressões interiores para
escapares à prepotência mecânica da fábula e extrais dessa minúscula
infracção uma radiosa e inevitável felicidade. O enredo dobra-se e
desdobra-se vezes sem
conta numa sinuosa procissão de mandatos, ordens, desordens e recados, que cumpres escrupulosamente até não poderes mais. Quando anoitece e julgas que sais do trabalho, mandam-te finalmente jantar e depois regressar ao quarto, assistir a um pouco de solidão no ecrã. Mas assim que finges os protocolos do sono e crias a elipse terminal, diriges-te para a penumbra redentora de um bar, numa hora tóxica em que o diálogo reina sobre a descrição pouco apaziguada de um sofá, e ficas sentado junto de um par de pernas em chamas, com a garganta desfeita de tanto calares, um copo de uísque na mão onde o reflexo do teu rosto perdura trémulo e oxidado.
É quando te escorrem as lágrimas.
conta numa sinuosa procissão de mandatos, ordens, desordens e recados, que cumpres escrupulosamente até não poderes mais. Quando anoitece e julgas que sais do trabalho, mandam-te finalmente jantar e depois regressar ao quarto, assistir a um pouco de solidão no ecrã. Mas assim que finges os protocolos do sono e crias a elipse terminal, diriges-te para a penumbra redentora de um bar, numa hora tóxica em que o diálogo reina sobre a descrição pouco apaziguada de um sofá, e ficas sentado junto de um par de pernas em chamas, com a garganta desfeita de tanto calares, um copo de uísque na mão onde o reflexo do teu rosto perdura trémulo e oxidado.
É quando te escorrem as lágrimas.
André Domingues. em Enfermaria 6.
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