quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Jorge de Lima: Poema do Cristão

Porque o sangue de Cristo

jorrou sobre os meus olhos,

a minha visão é universal

e tem dimensões que ninguém sabe.

Os milênios passados e os futuros

não me aturdem porque nasço e nascerei,

porque sou uno com todas as criaturas,

com todos os seres, com todas as coisas,

que eu decomponho e absorvo com os sentidos,

e compreendo com a inteligência

transfigurada em Cristo.

Tenho os movimentos alargados.

Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;

sou velhíssimo e apenas nasci ontem,

estou molhado dos limos primitivos,

e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,

compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,

tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.

Posso enxugar com um simples aceno

o choro de todos os irmãos distantes.

Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.

Chamo todos os mendigos para comer comigo,

e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.

Não há escuridão mais para mim.

Opero transfusões de luz nos seres opacos,

posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas-do-mar,

porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,

e creio na vida eterna, amém.

E, tendo a vida eterna, posso transgredir leis naturais:

a minha passagem é esperada nas estradas,

venho e irei como uma profecia,

sou espontâneo com a intuição e a Fé.

Sou rápido como a resposta do Mestre,

sou inconsútil como a sua túnica,

sou numeroso como a sua Igreja,

tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita,

todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos cardeais,

e sobre os ombros A conduzo

através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz eterna nos olhos.

E tendo a luz eterna nos olhos, sou o maior mágico:

ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega, peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púrpura, e de estamenha, sou burríssimo como São Cristóvão, e sapientíssimo como Santo Tomás. E sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém!

E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida;

sou a balança, a criação, a obediência;

sou o arrependimento, sou a humildade;

sou o autor da paixão e morte de Jesus;

sou a culpa de tudo.

Nada sou.

 

 

Jorge de Lima. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997.

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