quinta-feira, 27 de junho de 2013

O POEMA DA ÁGUA



A fonte: ninho da água. A água nasce de ser plantada? Ou de pedra que se converte? Ninguém sabe, ninguém nunca viu. O parto da água não tem testemunha: aparecemos sempre depois. E, o depois, já é um ninho onde ela se constitui, emplumando-se ao modo de ser ave.
Assim, ao princípio, ouvimos apenas a água crescer em repuxos. Primeiro, é a liberdade à solta na forma de uma gota que se desprende ora do céu ou do ramo, ora da folha ou de algum beiral. Mais à frente é, já, uma pressa branca de frescura enchendo o ar de beleza. As suas asas transparentes descem, então, ao mundo e ao abrirem-se são os olhos do mundo. O alegre soar do imutável. Para aprender o seu enigma os pássaros aproximam-se silenciosos, e o homem contempla-a querendo sentir toda a sua inocência. Por vezes, também Irrompe na sua quietude. Entra nela e olha-se e abraça-a. E bebe-a para viver a paz da sua saciada sede. Mas é só em dias de sol que, do seu corpo de espuma, a plena luz emerge e faz reluzir, limpo de novo, a criança feliz e rei de tudo o que foi criado.
Quem procure a fonte que escute primeiro essa criança. Só depois rasteire os olhos entre a pedra e a erva. Deixe aí seu olhar pousado até que a alma se sinta molhada e mais que alagada: alaguada, como se diz em Arouca. Verá então como a água a si mesma se enche, abrindo as margens, soltando suas asas. Começa a viagem do rio sucessivo.
O rio: caligrafia da água. Do alto da serra, parece que o rio chove da sua taça branca. Limpo e solene. Mais perto se vê que, nas margens, se empoleira, contagiando-se de terra. O rio ora beija, ora morde a margem. Entre carícia e rasgão, se fazem seus incertos caminhos de amante. Nesse tropel, o leito torna-se assim sotaque da terra, pronúncia da própria vida. Montanhas liquefazendo sua carne térrea. Vales que se oceanificam. Como se o continente fosse natural da água e não lugar de terreno. Às vezes essa caligrafia flui mansa, líquida, diluindo os amargos recantos, consolando as arestas das margens. Outras, funda e espessa, quase imitando a massa. Então, em sua torrente me ensombro. E me duvido: afogar é afundar na água ou soterrar na massa?
Afinal, a fúria é breve. A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida.
O mar: pele da água. A água só despida está completa. Assim, da terra ela se distingue. A terra exige cobertura, construção. Enquanto a água do mar em sua própria pele se aconchega. Em tal nudez, nunca nenhum sulco se abriu, nenhuma ruga se desenhou. É todo um só corpo na ternura da sua própria nudez - a alva ternura que enche o mundo. Quem nunca sentiu isso que apanhe, rapidamente, o primeiro foguetão para o espaço. Aí, no meio de uma torrente de obscuridade e tempo, num ar absoluto de silêncio e esquecimento, basta aguardar pelo matinal nascimento da única cor rodando entre os astros. Como se essa cor fosse o solitário jardim de um perdido cosmos.

Então, é só apontar o olhar para o pequeno planeta azul do pólen de mar. É a mãe do nosso universo que, de um claro recanto do seu corpo terrestre, como um testemunho da fugaz mansão, escreve o nosso poema – o Poema da Humanidade.


Álvaro Couto

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