A fonte: ninho da água. A água nasce de ser
plantada? Ou de pedra que se converte? Ninguém sabe, ninguém nunca viu. O parto
da água não tem testemunha: aparecemos sempre depois. E, o depois, já é um
ninho onde ela se constitui, emplumando-se ao modo de ser ave.
Assim, ao princípio, ouvimos apenas a água crescer em repuxos. Primeiro, é
a liberdade à solta na forma de uma gota que se desprende ora do céu ou do
ramo, ora da folha ou de algum beiral. Mais à frente é, já, uma pressa branca
de frescura enchendo o ar de beleza. As suas asas transparentes descem, então, ao
mundo e ao abrirem-se são os olhos do mundo. O alegre soar do imutável. Para
aprender o seu enigma os pássaros aproximam-se silenciosos, e o homem
contempla-a querendo sentir toda a sua inocência. Por vezes, também Irrompe na
sua quietude. Entra nela e olha-se e abraça-a. E bebe-a para viver a paz da sua
saciada sede. Mas é só em dias de sol que, do seu corpo de espuma, a plena luz
emerge e faz reluzir, limpo de novo, a criança feliz e rei de tudo o que foi
criado.
Quem procure a fonte que escute primeiro essa criança. Só depois rasteire
os olhos entre a pedra e a erva. Deixe aí seu olhar pousado até que a alma se
sinta molhada e mais que alagada: alaguada, como se diz em Arouca. Verá então
como a água a si mesma se enche, abrindo as margens, soltando suas asas. Começa
a viagem do rio sucessivo.
O rio: caligrafia da água. Do alto da serra,
parece que o rio chove da sua taça branca. Limpo e solene. Mais perto se vê
que, nas margens, se empoleira, contagiando-se de terra. O rio ora beija, ora
morde a margem. Entre carícia e rasgão, se fazem seus incertos caminhos de
amante. Nesse tropel, o leito torna-se assim sotaque da terra, pronúncia da
própria vida. Montanhas liquefazendo sua carne térrea. Vales que se oceanificam.
Como se o continente fosse natural da água e não lugar de terreno. Às vezes essa
caligrafia flui mansa, líquida, diluindo os amargos recantos, consolando as
arestas das margens. Outras, funda e espessa, quase imitando a massa. Então, em
sua torrente me ensombro. E me duvido: afogar é afundar na água ou soterrar na
massa?
Afinal, a fúria é breve. A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o
mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida.
O mar: pele da água. A água só despida está
completa. Assim, da terra ela se distingue. A terra exige cobertura,
construção. Enquanto a água do mar em sua própria pele se aconchega. Em tal
nudez, nunca nenhum sulco se abriu, nenhuma ruga se desenhou. É todo um só
corpo na ternura da sua própria nudez - a alva ternura que enche o mundo. Quem
nunca sentiu isso que apanhe, rapidamente, o primeiro foguetão para o espaço.
Aí, no meio de uma torrente de obscuridade e tempo, num ar absoluto de silêncio
e esquecimento, basta aguardar pelo matinal nascimento da única cor rodando entre
os astros. Como se essa cor fosse o solitário jardim de um perdido cosmos.
Então, é só apontar o olhar para o pequeno planeta azul do pólen de mar. É
a mãe do nosso universo que, de um claro recanto do seu corpo terrestre, como
um testemunho da fugaz mansão, escreve o nosso poema – o Poema da Humanidade.
Álvaro Couto
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