Do Espaço
O meu avô materno morreu há um ano e nove meses. A última coisa que lhe pedi foi uma salamandra. Em troca enviou-me um cheque de cem euros para comprar um aquecedor que tive a oportunidade de lhe agradecer no seu leito de morte no corredor do Hospital de Penafiel. Da herança, a coisa mais certa que deixou foi metade de um jazigo onde não quis ser sepultado por lá estarem os seus pais. A família conta agora com dois meios jazigos em dois cemitérios do Porto.
Tenho um amigo. Um novo que agora tem nome. No seu quarto não há janelas. Duas clarabóias que nada devem ao romantismo centenário: antes à necessidade de haver luz. Que, uma sorte qualquer, garantiu ao dar dias ao tempo e umas telhas de vidro que um caixote de lixo lhe guardou. Sob elas uma cama para um corpo que, se olhar em frente e, se ao olhar em frente, olhar ainda mais em frente, vê uma retrete de louça. Livre de plásticos. Na casa do meu amigo nada se esconde. Tem periodicamente duas sacas de plástico. Uma, com fruta, maioritariamente laranjas; outra com um saco de arroz, conservas, um pacote de massa e um papelinho vermelho que diz «vale mensal: 2,50» para carne, se conseguir dão-lhe dois. Hoje, ao oferecer-lhe o almoço, confessou-me a sua preferência por unhas de porco.
Horas antes, na rua da Alegria, n.º 200, uma funcionária ao ler o seu relatório médico anexo ao pedido de pensão por invalidez disse-me que não bastava. Não chegava a tuberculose, o enfisema pulmonar ou o sangue. Era preciso um cancro. Daqueles de que um gajo sabe que não se safa. – «Isto será indeferido de certeza, as Juntas médicas só as dão quando uma pessoa está quase com os pés para a cova.», disse-me. Sorrindo-me com um colar de prata ao pescoço na forma de uma lemniscata. O meu amigo espera pelo rendimento social de inserção desde Fevereiro mas perdeu-o há mais de três anos. Comeu muitos vales mensais de carne. Tem sessenta e quatro anos e cinquenta e dois quilos. Receberá, talvez, enquanto espera um «fundo de maneio» na melhor das hipóteses de setenta euros.
Na casa do meu amigo não há segredos. Há ferro velho, um fogão de um só bico eléctrico, a retrete e a gratidão ao homem que lhe deu a chave daquela casa, de onde saiu quando o telhado aluiu. Quem passar na Ilha da Merda verá em frente a sua meia casa um pequeno quintal com um único limoeiro e uma vedação feita de persianas. Agora: cento e cinquenta quilos de batatas greladas e muitas podres que encontrou na Latino Coelho e trouxe às costas, em longas viagens, para lavar comer e dar a quem quiser. – «Quer batatinhas menina? Olhe que lavadinhas e limpinhas sabem muito bem.».
Às vezes enerva-se. Quando se enerva na segurança social ou no centro de saúde, abre muito os olhos, fecha os punhos, fecha a boca de quatro metades de dentes com muita força. Chora. O choro que o embacia e ajuda à surdez serve-lhe à ausência de se imaginar longe de mulheres, colares de prata, lemniscatas ou santíssimas trindades. Somos amigos e não o deixo falar. Somos amigos e jurei-lhe que não ia deixar que ele voltasse a acordar no meio de um procedimento médico por causa da negligência do anestesista. Prometi-lhe que ele não morreria. Ele confia em mim.
Na minha família temos dois meios jazigos em dois cemitérios da cidade, um mais nobre, o outro menos. Há cinquenta anos que deixamos de morrer na casa onde há duzentos anos nascíamos, adoecíamos, recuperávamos, casávamos e morríamos. Vendeu-se a homens de lei. Onde, por riso, em nove gerações apenas houve Homens de Lei. Nos anos vinte, ao bater um mendigo à porta de casa, o meu bisavô, que se preparava para jantar uma pescada cozida mandou a criada servi-la ao homem que pedia comida. Nessa noite, conta-se, o meu bisavô não quis comer.
Se eu fosse à meia casa do meu amigo e se ele estivesse a comer dois euros e meio de unhas de porco, ele dar-mas-ia. E, nessa noite, eu saberia que ele não comeria. Nem nessa nem nas seguintes.
O que eu talvez só lhe poderia pagar cedendo-lhe um espaço onde deixar as suas cinzas. Espaço para a morte ainda há; mas, mesmo esse, nunca se sabe: é que a minha família é muito grande.
Beatriz Hierro Lopes