sábado, 20 de dezembro de 2014

Beatriz Hierro Lopes

Do Espaço

O meu avô materno morreu há um ano e nove meses. A última coisa que lhe pedi foi uma salamandra. Em troca enviou-me um cheque de cem euros para comprar um aquecedor que tive a oportunidade de lhe agradecer no seu leito de morte no corredor do Hospital de Penafiel. Da herança, a coisa mais certa que deixou foi metade de um jazigo onde não quis ser sepultado por lá estarem os seus pais. A família conta agora com dois meios jazigos em dois cemitérios do Porto.
Tenho um amigo. Um novo que agora tem nome. No seu quarto não há janelas. Duas clarabóias que nada devem ao romantismo centenário: antes à necessidade de haver luz. Que, uma sorte qualquer, garantiu ao dar dias ao tempo e umas telhas de vidro que um caixote de lixo lhe guardou. Sob elas uma cama para um corpo que, se olhar em frente e, se ao olhar em frente, olhar ainda mais em frente, vê uma retrete de louça. Livre de plásticos. Na casa do meu amigo nada se esconde. Tem periodicamente duas sacas de plástico. Uma, com fruta, maioritariamente laranjas; outra com um saco de arroz, conservas, um pacote de massa e um papelinho vermelho que diz «vale mensal: 2,50» para carne, se conseguir dão-lhe dois. Hoje, ao oferecer-lhe o almoço, confessou-me a sua preferência por unhas de porco.
Horas antes, na rua da Alegria, n.º 200, uma funcionária ao ler o seu relatório médico anexo ao pedido de pensão por invalidez disse-me que não bastava. Não chegava a tuberculose, o enfisema pulmonar ou o sangue. Era preciso um cancro. Daqueles de que um gajo sabe que não se safa. – «Isto será indeferido de certeza, as Juntas médicas só as dão quando uma pessoa está quase com os pés para a cova.», disse-me. Sorrindo-me com um colar de prata ao pescoço na forma de uma lemniscata. O meu amigo espera pelo rendimento social de inserção desde Fevereiro mas perdeu-o há mais de três anos. Comeu muitos vales mensais de carne. Tem sessenta e quatro anos e cinquenta e dois quilos. Receberá, talvez, enquanto espera um «fundo de maneio» na melhor das hipóteses de setenta euros.
Na casa do meu amigo não há segredos. Há ferro velho, um fogão de um só bico eléctrico, a retrete e a gratidão ao homem que lhe deu a chave daquela casa, de onde saiu quando o telhado aluiu. Quem passar na Ilha da Merda verá em frente a sua meia casa um pequeno quintal com um único limoeiro e uma vedação feita de persianas. Agora: cento e cinquenta quilos de batatas greladas e muitas podres que encontrou na Latino Coelho e trouxe às costas, em longas viagens, para lavar comer e dar a quem quiser. – «Quer batatinhas menina? Olhe que lavadinhas e limpinhas sabem muito bem.».
Às vezes enerva-se. Quando se enerva na segurança social ou no centro de saúde, abre muito os olhos, fecha os punhos, fecha a boca de quatro metades de dentes com muita força. Chora. O choro que o embacia e ajuda à surdez serve-lhe à ausência de se imaginar longe de mulheres, colares de prata, lemniscatas ou santíssimas trindades. Somos amigos e não o deixo falar. Somos amigos e jurei-lhe que não ia deixar que ele voltasse a acordar no meio de um procedimento médico por causa da negligência do anestesista. Prometi-lhe que ele não morreria. Ele confia em mim.
Na minha família temos dois meios jazigos em dois cemitérios da cidade, um mais nobre, o outro menos. Há cinquenta anos que deixamos de morrer na casa onde há duzentos anos nascíamos, adoecíamos, recuperávamos, casávamos e morríamos. Vendeu-se a homens de lei. Onde, por riso, em nove gerações apenas houve Homens de Lei. Nos anos vinte, ao bater um mendigo à porta de casa, o meu bisavô, que se preparava para jantar uma pescada cozida mandou a criada servi-la ao homem que pedia comida. Nessa noite, conta-se, o meu bisavô não quis comer.
Se eu fosse à meia casa do meu amigo e se ele estivesse a comer dois euros e meio de unhas de porco, ele dar-mas-ia. E, nessa noite, eu saberia que ele não comeria. Nem nessa nem nas seguintes. 
O que eu talvez só lhe poderia pagar cedendo-lhe um espaço onde deixar as suas cinzas. Espaço para a morte ainda há; mas, mesmo esse, nunca se sabe: é que a minha família é muito grande.

Beatriz Hierro Lopes

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Rosa Maria Martelo

A última cor

«Venenoso escuro» disse a criança
Ao mergulhar na água o pincel sujo de tinta.

Aviso, sinal, apocalipse, rio sem futuro,
Pequeno muro onde cor nenhuma
Fechava a toda a luz um copo de água.



Rosa Maria Martelo, Matéria, Lisboa, Averno, 2014.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Ana Martins Marques


Trapézio

Uma vez vendo um número de circo
apenas razoável
à noite
numa praça do interior
(tédio e susto, alcoóis fortes, lua baça)
foi que eu me dei conta de que
nunca houve um trapezista
que não estivesse apaixonado.
Todos os poemas são de amor.


MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

Ana Martins Marques


  
Self Safári (Carta para Ana C)

Ciganas
passeando
com um rosto escolhido
por paisagens cegas de palavras
traduzidas
inconfessas
rabiscos
ao sol.
Cotidianas
vivendo dias de diários
e mentindo descaradamente
nos silêncios das cartas
(selos postais
unhas postiças
versos pós-tudo).
Fulanas
de nomes reversíveis
para ir e voltar
sem sair do lugar:
self safári
por essa paisagem toda
que no fundo
Ana
nada tem a ver conosco.



MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.

Daniel Francoy

O Poeta despede-se de algo infinito 

Hei de regressar
mas será no inverno
em alguma casa
diante da praia:
o tédio, o sal,
a pele ferida,
ferrugem que a noite
põe nas dobradiças
das portas quebradas
e no coração
que ficou – brinquedo
também esquecido,
carrossel de ferro
que ainda gira entre
risos e ruínas.

No imenso amanhã
o início da chuva
lava até os ossos,
as gaivotas somam
o branco ao branco,
sombras e memórias
(bafejo de nada)
hei de regressar
na aurora depois
das questões inúteis:
brindar com arsênico,
abrir os pulmões
ao vácuo estelar,
escavar a luz
nos subterrâneos.

2. 

No imenso amanhã
um bafejo de sal
o início da chuva
que lava até os ossos
as gaivotas somando
o branco ao branco
e eu de regresso
sombra e memória
na aurora depois
das cogitações inúteis:
beber arsênico
abrir os pulmões
ao vácuo nas nebulosas
escavar a luz
no claustro subterrâneo
abandonar o meu nome
à sorte das raízes.

Daniel Francoy

Partilhado a partir de Enfermaria 6

sábado, 13 de dezembro de 2014

Adrienne Rich


 



The moment of change is the only poem




Adrienne Rich, Images for Godard.

Nuno Júdice


Génese

Desfaço nos olhos o azul do céu, e
deito-o na página, com um brilho de manhã
à mistura. As palavras cintilam, numa
breve alquimia de luz. Depois, voltam
ao primeiro significado, mas o que leio
é já outra coisa. O azul fica envolto
numa espuma de oceano; a manhã
tem a frescura do fruto que se acabou
de colher; a página estende-se até
ao fim da imaginação, onde outros
continentes se abrem. E o rosto que
nela se imprime tem a tua cor, a tua
pele, o vermelho dos teus lábios,
o mármore divino do dia que nasce
quando, nos olhos, desfaço
o azul do céu.


Partilhado a partir de: http://aaz-nj.blogspot.pt/2006_09_01_archive.html

Malcolm Lowry


Sê paciente, pois o lobo


Sê paciente, pois o lobo está sempre contigo.
Escuta, imbecil, o som do teu desejo;
Não te deixes iludir, não é o mar,
O lobo é loucura, mas a lua é luz.
Deus virá de uma ignorância como a tua,
Não como um boneco de caixa de surpresas, mas como
Árvore feita pai choroso em delírio,
As dores da noite têm todas o seu trágico lugar,
Meio rosto de Deus procura a outra metade.
E Ele achará o teu génio na escuridão
E to restituirá sem fiador.

Sê paciente, pois o lobo está sempre contigo,
Feio e mau e, contudo, divino.
Esquece o estrépito do mar,
O mar desdenhoso fazendo beiço todo o dia,
Estridente como fábricas de vidro a estilhaçar-se.
Passa ao largo do mar lustroso, invindimável,
Pois quem lhe bebe mais fundo são os afogados.
A neve negra amontoa-se sob o relógio,
Onde o encontro falhado se junta a tempo ao coração magoado.
Este é um mundo de mistérios sem valor.
Sê paciente, pois muita, muita coisa é paciente.

Sê paciente, pois o lobo é paciente,
Aquele cuja sombra curta aqui parou.
Os prados aguardam que os arco-íris digam Deus,
As sombras aguardam que tu digas a palavra,
Duas almofadas confiam no amor para salvar o mundo.
Ao luar o mineiro vacila junto à âncora suja.
O frete aguarda: o navio congela no fiorde.
O anjo aguarda, o coração feito mão dorida
Pronta a levar-te, longe de nós, para o país do entardecer,
Onde ninguém é voraz, mas onde as coisas se fazem,
E onde não há lobo, nem pensar em dilúvio.
Sê paciente, porque o lobo é paciente.
O pisco aguarda das trevas a reparação,
A andorinha anseia pelo Outono para dizer já,
E Eco por Hero, para não responder não.
Só o sino que segue não espera,
Galopando o seu rosto de mãe pelos campos fora,
Para te esfolar até ao osso com a rudeza do repique.
No começo do Inferno, no meio
Da floresta, a imagem oscila entre mãe e mar.
Não dês ouvidos ao sino nem ao mar envelhecido,
Mas ao bom e querido lobo jura fidelidade.

Sê paciente, por causa do lobo, sê paciente:
Todas as dores e guinchos da noite têm o seu lugar,
Acharás a tua toca de sangue quente e enfim repousarás;
As sombras aguardam que digas a palavra.
Escuta agora o teu próprio passo macio e manhoso.
Sê paciente, por causa do lobo, sê paciente -
O passo dele é já o teu, és livre porque despojado.


Malcolm Lowry, As cantinas e outros poemas do álcool e do mar, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Ana Martins Marques


 Dardo

Existe o corpo,
o eixo dos joelhos, as dobras,
a força teatral dos membros, o gosto acre,
o extremo silêncio,
as mãos pendentes.
Existe o mundo,
as savanas e o iceberg,
as horas velozes, o falcão,
o crescimento secreto
das plantas, o repouso dos objetos
que envelhecem no uso, sem dor.
Existe o poema,
um dardo atirado a coisas mínimas,
à noite, às cicatrizes.
Um secreto amor os une,
as mãos na água, a memória do verão,
o poema ao sol.


Ana Martins Marques, A Vida Submarina (2009).