quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Francisca Camelo: Cassiopeia


primeiro: o coração

primeiro: o coração.
se calhar dois (um
para quando se morre
outro para a espera do
milagre)
e o teu sorriso icónico
já perto de desaparecer:
há coisas que só depois
percebemos que devíamos
ter roubado –
e mais tarde o que me
fica nas mãos,
demasiado íntimo
para carregar comigo
enquanto faço as rotinas
na loja do costume e
perguntam
como vai? e sei por
dentro que o teu sexo me ficou
no cheiro,
por isso sorrio e
genuinamente
respondo que
muito bem, cá se vai
andando
e sorrio de novo
no meu corpo o teu rasto
o arrepio de só há pouco
teres saído:
volta, estou tão perto
(se todas as noites me
visitasses seria tão fácil
morrer)
enquanto por dentro
falo
calada
a dizer tanto
e o corpo, o corpo e o sorriso
que não voltei a ver,
o sexo
a namorada que guardas na gaveta
lá de casa quando apareço: mas primeiro sorrio
primeiro faço as compras da loja
do costume sorrio de novo
os morangos estão fora de época
o teu sexo numa estufa
as laranjas enormes,
com uma cor de encher
os olhos, mas primeiro,
o coração.
primeiro: o coração.













Francisca Camelo. Cassiopeia. Porto: Apuro, 2018.

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