quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Charles Baudelaire

O Bolo


Eu viajava. A paisagem no meio da qual eu estava era de uma grandiosidade e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa passava-se, sem dúvida, nesse momento em minha alma. Meus pensamentos giravam com uma leveza igual à da atmosfera; as paixões vulgares, tais como a ira e o amor profano, pareciam-me agora tão distantes quanto as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob meus pés; minha alma parecia tão vasta e tão pura quanto a cúpula do céu que me envolvia; a lembrança das coisas terrestres não chegava a meu coração a não ser atenuada e diminuída como o som dos sininhos de animais imperceptíveis que pastavam ao longe, bem longe, na vertente de uma outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro pela sua imensa profundidade, passava, vez por outra, a sombra de uma nuvem, como o reflexo do capote de um gigante voando através do céu. E me lembro que essa sensação solene e rara, causada por um grande movimento completamente silencioso, enchia-me de alegria misturada com medo. Ou seja, eu me sentia, graças à entusiasmante beleza pela qual estava envolvido, em perfeita paz comigo e com o universo; creio mesmo que, em minha perfeita beatitude e total esquecimento de todo o mal terrestre, acabei por não achar mais ridículos os jornais que pretendem que o homem nasce bom — nisso, como a matéria incurável renovasse suas exigências, sonhei descansar da fadiga e aliviar o apetite causados por uma tão longa ascensão. Tirei de minha bolsa um grande pedaço de pão, uma xícara de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos, naquele tempo, vendiam aos turistas para. na ocasião, misturar com a água da neve. Estava cortando tranquilamente o meu pão quando um ruído muito leve fez-me levantar os olhos. Diante de mim encontrava-se um pequeno ser esfarrapado, negro, descabelado, cujos olhos escavados, ferozes e como que suplicantes devoravam o pedaço de pão. Eu o ouvi suspirar em voz baixa e rouca a palavra: bolo! Não pude me impedir de rir, escutando o termo que ele empregava para louvar meu pão quase branco, e eu, então, cortei uma bela fatia e ofereci a ele. Ele aproximou-se, lentamente, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça; depois, agarrando o pedaço com a mão, recuou, rapidamente, como temendo que minha oferta não fosse sincera ou que eu já me tivesse arrependido.

Mas, no mesmo instante, foi derrubado por um outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se poderia tomá-lo por seu irmão gêmeo. Juntos eles rolaram pelo chão disputando a preciosa presa, nenhum deles querendo, sem dúvida, sacrificar a metade para seu irmão, O primeiro, exasperado, agarrou o segundo pelos cabelos; este, por sua vez, segurou o outro pela orelha com os dentes e cuspiu uma pequena quantidade de sangue com um soberbo xingamento em patoá. O legítimo proprietário do bolo tentou enfiar suas pequenas unhas nos olhos do usurpador; por sua vez este aplicou todas as suas forças para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate. Mas, reavivado pelo desespero o vencido voltou a atacar e botou o vencedor por terra com uma cabeçada no estômago. Como descrever uma luta tão feia que durou, na verdade, mais tempo que as forças infantis pareciam prometer? O bolo viajara de mão em mão e mudara de bolsos a cada instante: mas, oh! mudara também de volume; e até que, por fim, extenuados, ofegantes, sangrando, eles pararam por impossibilidade de continuar, pois não havia mais, a bem dizer, nenhum motivo de briga: o pedaço de pão tinha desaparecido, espalhado pelo chão em forma de migalhas semelhantes a grãos de areia, com os quais estava misturado. Este espetáculo havia-me ensombrecido a paisagem e a calma alegria onde se deleitava minha alma, antes de ver esses pequenos homens, tinha desaparecido totalmente; fiquei triste durante muito tempo, repetindo-me sem cessar: “Existe um soberbo país onde o pão se chama bolo, guloseima tão rara que é suficiente para engendrar uma guerra perfeitamente fratricida!"


Charles Baudelaire, in O Splen de Paris.

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