Amadeo de Souza-Cardoso (1997-1918).
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Pedro Eiras: Substâncias Perigosas
Esconjuros e mentiras
Uma ciência do erro.
Sempre preferi ler textos obviamente errados mas cheios de possibilidades de
pensamento – a textos certos que só repetem o que já sei.
E o que se lê, ainda que seja errado, começa a tornar-se real, porque cada
livro reinventa o mundo.
Viver no mundo certo inventado pelo livro errado.
O que interessa, de facto, é algumas operações. Não mais matéria, menos
matéria, mais sumário, menos sumário. Interessa uma pequena operação de
pensamento: inventar uma pequena nova torção para a realidade.
Não confirmar nada: surpreender tudo.
Pedro Eiras, Substâncias Perigosas, Pedro Eiras, Livro do Dia.
José Cardoso Pires: O Delfim
Falta uma
vírgula na paisagem:
E a tarde escorre sem estremecer. Nem um golpe de ar, nem um pássaro, um ruído ao menos a a descer dos montes pela estrada. Isto, no fundo, é morte. podia-se pôr uma cegonha na torre da igreja - seria a vírgula. um pescoço longo e curvo, espalmado no ar sobre o largo. As cegonhas pensam muito nos filhos, parece. Andam de terra em terra a pensar neles.
(...)
Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha
janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar
o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada-criança, como é
hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de
montanha. E seios, seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço,
pelas nádegas. Inclusivamente, os braços são seios atravessados por dois ossos
tenríssimos. "Jesus, o que são as coisas," queixa-se ela a todo o
momento.
Com um corpo assim não podia deixar de ser uma criatura sofredora, maternal. Vemo-la sentada, formiga-mestra duma hospedaria de caçadores: toda ela transborda generosidade. O modestíssimo cheiro a sabão amarelo, e começamos a perceber uma música gentil lá no alto - a sua voz.
Com um corpo assim não podia deixar de ser uma criatura sofredora, maternal. Vemo-la sentada, formiga-mestra duma hospedaria de caçadores: toda ela transborda generosidade. O modestíssimo cheiro a sabão amarelo, e começamos a perceber uma música gentil lá no alto - a sua voz.
PIRES, José Cardoso (1998), O Delfim, Lisboa, Publicações Dom Quixote.
André Domingues: o teu vestido
Agarro a tesoura porque estou apaixonado por tudo o que a tesoura pode fazer por mim. Num instante recordo os direitos e os deveres da tesoura. Os deveres: cortar, recortar, resumir. Os direitos: matar, magoar, interferir. Entretanto a tesoura confessa-me que está faminta. Já não corta há muito tempo, disse-me, com o olhar de lince dirigido ao teu vestido. A tesoura está mesmo desesperada, parece querer ganhar vida, faz acrobacias no ar, abre e fecha as suas pernas de bailarina e oferece a sua nudez e os seus serviços ao teu vestido. O teu vestido não fala, não se mexe, não reage porque tem medo de perder a virgindade do destino, mas, no fundo, o teu vestido já é curto e decotado o suficiente para perceber que a morte é uma alegoria, que nenhuma arma pode acrescentar nada à natureza do indivíduo e que o melhor é fechar os olhos e não resistir.
André Domingues (Inédito).
Manuel de Freitas: Nada de Nada
para
o José Carlos Soares
Um dia, logo de manhã, entraremos
num cemitério e perguntarás a Antonia
Pozzi se estar morto é mais ou menos
triste do que estes dias arduamente sepultados.
Receando que saibas a resposta, beberei
com Lowry a primeira ou a última tequila,
na certeza de que ambos os adjectivos estarão
certos (um pouco, talvez, demasiado certos).
Assim possa a chuva apagar todos
os versos que escrevemos
para nada, sobre nada, contra nada,
à sombra imensa dos jacarandás
que floriam - distraídos, quase por engano -
no Rossio. E inundavam de luz (nunca
vi uma luz tão escura) as portas
e os umbrais deste cemitério assim.
FREITAS, Manuel (2007), Terra sem Coroa, Vila Real, Teatro de Vila Real.
Um dia, logo de manhã, entraremos
num cemitério e perguntarás a Antonia
Pozzi se estar morto é mais ou menos
triste do que estes dias arduamente sepultados.
Receando que saibas a resposta, beberei
com Lowry a primeira ou a última tequila,
na certeza de que ambos os adjectivos estarão
certos (um pouco, talvez, demasiado certos).
Assim possa a chuva apagar todos
os versos que escrevemos
para nada, sobre nada, contra nada,
à sombra imensa dos jacarandás
que floriam - distraídos, quase por engano -
no Rossio. E inundavam de luz (nunca
vi uma luz tão escura) as portas
e os umbrais deste cemitério assim.
FREITAS, Manuel (2007), Terra sem Coroa, Vila Real, Teatro de Vila Real.
terça-feira, 19 de novembro de 2013
Guerra Junqueiro: Oração à Luz (1904)
Claro
mistério
Do
azul etéreo!
Sonho
sidéreo!
Luz!
Da
Terra dorida
Alento
e Guarida!
Fermento
da vida,
Luz!
Eucaristia
santa,
Vinho
e pão que alevanta
Homem,
rochedo e planta…
Luz!
Virgem
ígnea das sete cores,
Toda
abrasada de esplendores,
Mãe
dos heróis e mãe das flores,
Luz!
Fiat
harmónico e jucundo,
Verbo
diáfono e profundo,
Alma
do Sol, corpo do mundo,
Luz!
Luz-esp’rança,
luz rútila da aurora,
Vida
vibrando na ampliação sonora,
Vida
cantando pela vida fora,
Luz!
Luz
que nos dás o pão, ó luz amada!
Luz
que no dás o sangue, ó luz doirada!
Luz
que nos dás o olhar, luz encantada!
Bendita
sejas, luz, bendita sejas!
Sejas
bendita em nós, ó fonte de harmonia!
Sejas
bendita em nós, ó urna de alegria!
Bendito
seja o filho teu, o alvor do dia!
Perpetuamente,
ó luz, ó mãe, bendita sejas!
*
A
inabalável rocha taciturna,
Quando
a electrize o teu deslumbramento,
Acora
e sonha na mudez soturna…
Por
ti se volve areia; e num momento
A
área é lodo, é seiva, é fruto lindo,
É
carne humana, é sangue, é pensamento…
Por
ti a água exulta, anda bramindo,
Por
ti rola do monte ao sorvedoiro,
E
voa, em nuvens, pelo azul infindo…
Por
ti orvalho: Cai no trigo loiro?
É
pão e é hóstia … Cai na flor? Incenso,
Néctar,
abelha, borboleta d’oiro…
Por
ti flutua o ar, um mar imenso,
Prenhe
de vidas invisíveis, onde
Todo
o sonho da terra anda suspenso…
Ao
teu hálito, ó luz, nada se esconde:
Brilhas!
E a alma opaca da matéria
Das
entranhas do globo te responde!...
Brilhas!
E amor e dor, luto, miséria,
Doira-os
a graça, a juventude, o encanto
Do
teu manto de púrpura sidérea!
És
tu que alumbras alegria e pranto:
No
sorriso do herói clarão eterno,
Prisma
de Deus na lágrima do santo.
Em
teu fulgor genésico e materno
Surdem
núpcias das campas viridente
E
um novo abril palpita em cada Inverno…
Por
ti suspiram, sem te ver, dormentes,
As
almas vegetais, indefinidas
No
mistério noturno das sementes…
Germinando
por ti, por ti vestidas,
Sonham
aroma, sonham forma e cor,
Em
teu alvor magnético embebidas…
E
esplêndidas de graça, enlevo e amor
Erguem-te,
ó luz, um ai e luz adiante,
Aberto
em beijo, idealizado em flor!...
Por
teu frémito d’oiro, instante a instante,
O
verme cego, enclausurado, imundo,
Gera
a visão liberta e deslumbrante.
Por
ti um sopro anímicoo e fecundo
Penetra
o lodo, a rocha, a água, o ar,
Voa
de esporo a esporo, e mundo a mundo…
Por
ti a asa, o lábio, a mão, o olhar…
Por
ti o canto e o riso e o beijo e a ideia…
Por
ti o verbo ser e o verbo amar!...
A
inextrincável, a infindável teia
Do
sonho do universo em luz é urdida,
Em
Luz vislumbra e misteriosa ondeia…
Suspensa
em luz, da mesma luz nutrida,
Vai
para Deus rolando eternamente
A
dor, na eterna evolução da vida…
Homem,
nuvem, granito, onda, serpente,
A
rocha, o ar, o abutre, a folha d’hera,
O
mundo, os mundos, tudo que é vivente,
Do
lodo à águia, do metal à fera,
Da
fera ao anjo, do covil à cruz,
Move-se
tudo, existe e reverbera,
Sonhando,
amando, palpitando em luz!...
***
E
o coração a arder, que das alturas
Manda
perpétua luz às criaturas,
Vive
às escuras!
Seus
infernos de fogo a trovejar
Dão
aurora e luar.
Sua
angústia sem fim, que não descansa,
É
mãe do beijo e mãe da esp’rança.
Dos
ais candentes da sua dor
Brota
o sorriso e brota a flor.
Bendito
seja!
Arde
por nós a toda a hora,
Sofre
por nós a toda a hora,
Por
nós morrendo a toda a hora,
Continuamente!
Bendito
seja!
O
seu tormento é o nosso alento,
Sua
paixão cruel e dolorida
A
nossa vida.
Bendito
seja! bendito seja!
Bendito
o mártir, cujo sangue a flux
Alaga
os mundos de marés de luz!
Bendita
a horrenda e trémula agonia,
Cujos
suspiros são o alvor do dia!
Bendita
a morte, em cuja essência etérea
Ondula
para Deus nossa miséria!
Bendito
seja!
Bendito
seja!
Bendito
seja!
Bendito
vezes mil o fecundo esplendor,
Nossa
vítima e nosso redentor!...
***
Homem!
Quando
a alvorada alumie o horizonte,
Ergue-te
em pé, ergue essa fronte!
Ergue-te
livre, em pé, na terra escrava,
Em
que hás sido mudez caliginosa
E
onda e rocha e verme e fera brava…
Ergue
essa fronte humana misteriosa,
Enigmática
flor crepuscular,
A
flor que chora que sorri, que pensa,
A
flor de dor, que a natureza imensa
Milhões
de anos levou a arquitetar!...
Ergue-te
calmo sobre a terra obscura,
Filho
de Satanás, pai de Jesus!
E
no enlevo, no mimo, na candura
Da
madrugada angelizada e pura,
Faz
d’olhos tristes, o sinal da cruz:
Uma
cruz imortal em pensamento,
Uma
infinita cruz, cheia de luz,
Aberta
aos mundos num deslumbramento…
Cruz,
que vindo de deus, trespasse o inferno,
Cruz
abarcando toda a imensidade,
Cruz
onde um Cristo, o Amor Eterno,
Chore
sem fim a dor da Eternidade!...
E
extático, enlevado, absorto, imerso
Na
harmonia inefável amplidão,
Ébrio
de Deus, Ungido de universo,
Homem,
levanta à luz esta oração:
Monstro
de dor nos ermos do infinito,
Ó
Sol crucificado, ó Sol bendito!
Tua
carne de fluidos e metais
É
a carne embrião do mundo todo,
Das
águas e das rochas e do lodo,
Que
foram nossas mães e nossos pais!
Por
isso lanças para nós teu grito,
Por
isso voam para nós teus ais!
São
os teus ais sem fim de moribundo
A
luz, esp’rança que electriza o mundo.
O
oiro divino das manhãs formosas,
Que
os orbes veste de sendais e rosas,
Como
se fossem pobrezinhos nus,
É
o estertor e a dor do teu fadário,
É
sangue a espadanar do teu calvário,
A
jorrar do teu corpo e da tua cruz!
Bendito
o Cristo-Sol na crua ardente,
O
monstro mártir, que infinitamente
Por
nós expira, soluçando luz!...
Ó
luz, ó luz, o mundo que te devora,
Mas
revives no mundo a toda a hora.
Morres
para nascer a todo o instante,
Mais
perfeita, mais pura e mais brilhante.
Sim,
mais brilhante: a claridade
Vem
só do amor e da verdade.
Tu
revives, ó luz, mais amorosa
Na
água fluida, trémula e viscosa.
Na
água fecundante e conjugal,
Mãe
do homem, do verme e do cristal.
Na
água móvel, mágica, indecisa,
Onde
a vida fermenta e fraterniza…
Por
onde o sangue a e seiva, ébrios d’amor,
Circulam
para a ideia ou para a flor!
Mas
a água te absorve e te agradece,
Nunca
te esquece, ó luz, nunca te esquece:
Almas
da água, quando se casaram,
Foi
com beijos de luz que se beijaram.
***
Tu
revives na terra áspera e dura,
Que
é leite e mel na boca da verdura.
Leite
e mel da raíz, do sugadoiro,
Que
mama fragas e dá frutos d’oiro.
Sim,
revives mais pura, muito mais,
No
granito e no lodo e nos metais.
Matéria
bruta
Não
vê, não fala, não escuta,
Não
pode amar,
Sem
se tocar.
Quando
se toca é que se liga,
Tem
de ser densa para ser amiga.
Na
rude e baixa natureza
O
amor é solidez, a afeição é dureza.
E
por isso o cristal
É
um verdadeiro santo mineral.
Rochedo
ou bronze
Mantém
na estátua o génio criador,
Porque
rochedo e bronze
São
dois blocos d’amor.
O
sonho ideal e genial, sonho impoluto,
Não
se esvaiu, porque fundiu
No
sonho bruto…
Fragas
imóveis, taciturnas,
Que
nós pisamos, caminhando,
São
almas lentas, ínfimas, nocturnas,
Cegas
e surdas, que se estão beijando!...
A
pedra, ó luz, te absorve e te agradece,
Nunca
te esquece, ó luz, nunca te esquece:
Porque
as pedras, inertes e geladas,
Já
foram sóis, estrelas, alvoradas…
*
Tu
revives, ó luz, mais santa,
N’alma
da planta.
Alma
já feita de infinitas almas,
Vida
Gerada de infinitas vidas,
Mas
presas todas, palpitando unidas
Numa
só alma!
Almas
que existem para a mesma ânsia,
Que
a mesma ardente aspiração eleva…
Sonhando,
amando, ouvindo-se a distância,
Folha
livre no azul, raiz muda na treva…
Almas
aéreas, ondulantes,
Ébrias
de cor e de esplendor,
Ao
Deus ignoto erguendo as verduras radiantes,
Ao
Eterno evolando emanações de flor…
E
flor doirada e folha verde e troncos nus
Condensam
chamas, arquitectam luz!
Incorporam
em luz o infindável desejo,
Edificam
em luz a essência misteriosa
Que,
suspiro a suspiro e beijo a beijo,
Vai
do líquen ao cedro e vai do musgo à rosa!...
Ervas,
florestas, pâmpanos, rebentos,
Cálices
d’oiro, bosques a noivar,
São
esculturas em deslumbramentos,
Sonhos
urdidos com a luz e o ar!...
*
E
inda mais bela que na Primavera
Ressuscitas
ó luz, num verme ou numa fera,
Que
já tem sangue e tem olhar!
Luz
dardejante!
Graça
da cor! alvor, fulgor, esplendidez!
Tu
és escuridão, és uma cega errante…
Cega
nocturna e deslumbrante,
Porque
alumias e não vês!
Esses
olhos de estrelas vagabundos,
Olhos
de luz tão viva que incendeia,
Não
descobrem nem páramos, nem mundos,
Não
conhecem nem flor, nem grão d’areia!
E
uma alimária torva, rastejando,
Vê
as nuvens e os pássaros em bando,
Vê
da noite o clarão,
E
na centelha exígua da pupila
Junta
o braseiro d’astros que rutila,
Imensurável
na amplidão!
O
olho ardente
É
luz prodigiosa, é luz consciente.
Olhar
É
distinguir, unir, fraternizar
O
sonho do universo,
Tudo
o que anda disperso
Ou
no lodo ou na rocha ou na água ou no ar...
E,
dilatando o amor,
Dilata-se
a visão, cresce a união, cresce o esplendor.
Olhos
perfeitos,
D’eterna
luz,
Só
os olhos divinos dos eleitos.
Só
os olhos de Buda ou de Jesus.
***
E
ainda mais santa e mais harmoniosa
Que
nos olhos da pomba ou no cálix da rosa,
Tu
revives, ó luz, na música dos ninhos,
Na
alegria infantil dos passarinhos.
A
ave canta,
Sonorizando
aurora na garganta...
Verdilhão,
toutinegro, rouxinol
Declamam
luz, gorjeiam sol.
Morre
a canção na escuridão...
Canção
alada!
Tu
és a voz idealizada
Da
natureza flórida e fecunda,
Ébria,
bebendo oceanos d’alvorada...
Toda
a alma da luz, que a terra inunda,
Todo
o anseio da terra ao fulgor imortal,
Cantam
na voz da cotovia,
Cristalizam
na límpida harmonia
Dum
beijo d’ouro ideal!...
O
mundo, ó luz, te absorve e te devora,
Mas
revives no mundo mais intensa,
Mais
próxima de Deus a cada hora,
Nas
vidas todas desta vida imensa,
Vidas
sem fim, almas sem fim,
Que
o segredo do amor junta e condensa,
Por
meus olhos magnéticos, em mim!
Lampejam
no meu corpo, humanizadas,
Mortas
constelações e mortas alvoradas.
Desde
que a Vida me gerou em dor
E
fui éter, estrela, água, montanha e flor;
Desde
que verme obscuro andei a rastros,
E
lobo em pé, sob o clarão dos astros,
Ao
verter uma lágrima ligeira,
Me
senti homem pela vez primeira;
Quantos
sóis, nebulosas, firmamentos,
Varridos
já n’asa dos ventos,
Não
deram luz ao lodo triste,
Que
em mim, sonhando e suspirando, existe?!...
Todo
o meu corpo é luz esplendorosa,
Sou
um hino de luz religiosa,
Gravitando
na órbita de Deus...
Milhões
d’auroras riem no meu canto,
Ondas
d’estrelas brilham no meu pranto,
Pélagos
de luas há nos olhos meus!...
Esta
carne, este sangue, esta miséria,
E
este ideal imortal que me conduz,
Já
foram brasas na amplidão etérea,
Por
isso exultam devorando a luz...
Vive
de luz minha alegria e minha mágoa,
Bate
na luz meu coração,
Fulge
na luz o meu olhar...
Ó
luz tremente, eu bebo-te na água,
Ó
luz ardente, eu como-te no pão,
E
calco-te na lama e sorvo-te no ar!...
Ó
luz! Luz! Luz!
Como
te hei-de remir e te hei-de consolar?!...
Luz
que nos enches de alegria,
Luz
que desvendas a harmonia,
Que
és o esplendor e a cor da natureza,
Farei
de ti, luz dum só dia,
A
luz perpétua da Beleza!
Luz
que iluminas a existência,
Luz
que propagas a evidência,
Que
dissolves o erro e a escuridade,
Farei
de ti, da tua essência,
A
luz augista da Verdade!
Luz,
onde os olhos e ond eo pensamento
Casam
a estrela, o verme, a rocha, a água, o vento,
Homens
e monstros, a canção e a dor,
Farei
de ti, luz dum momento,
A
luz eterna, a luz divina, a luz do Amor!
Farei
de ti a luz do Amor, que não se apaga,
A
luz que tudo alaga
E
tudo vê e tudo esquece...
A
luz que nos deslumbra e irradia
Dum
suspiro, dum ai, duma agonia,
Dum
beijo humilde ou duma prece...
A
luz, em cuja glória idealizante,
O
braseiro dos astros rutilante
É
cinza escura e sepulcral,
E
a apoteose imensa da alvorada
Uma
lúgubre e lenta fumarada,
Sonho
torvo da dúvida e do mal...
A
luz que transfigura e que converte
O
César deslumbrante em poeira inerte
E
o vagabundo, a rastros, num clarão...
A
luz que acende lágrimas doridas
Em
estrelas eternas e floridas,
Em
jardins de candura e de perdão!...
Luz
onde tudo vai boiando imerso,
Luz
Espírito e Alma do universo,
Sol
dos sóis, incriado e criador...
Luz
da misericórdia e lz de esp’rança,
Luz
de infinita bem-aventurança,
Manhã
que rompe da infinita dor...
Ó
luz dos astros, cega luz corpórea,
Que,
revivendo, és água transitória,
Fraguedo
e areia, podridão e planta,
Cálix
que murcha e que a nortada leva,
Olhar
de brasas que se volve em treva,
Gorjeio
lindo que uma hora canta,
Em
meu sangue exaltada e sublimada,
Em
meu divino ideal crucificada,
À
paz suprema chegarás por mim:
Serás
a luz do Espírito amoroso,
Serás
na eterna dor o eterno gozo,
A
beatitude harmónica e sem fim!
Oremus:
Cândida
luz da estrela matutina,
Lágrma
argântea na amplidão divina,
Abre
meus olhos com o teu olhar!
Viva
luz das manhãs esplendorosas,
Doira-me
a fronte, inumda-me de rosas,
Para
cantar!
Luz
abrasando, crepitando chama,
Arde
em meu sangue, meu vigor inflama,
Para
lutar!
Luz
das penumbras a tremer nas águas,
Vela
as montanhas dum vapor de mágoas,
Para
sonhar!
Luz
dolorosa, branda luz da Lua,
Embala,
embebe a minha dor na tua,
Para
chorar!
Luz
das estrelas, vaga luz silente,
Cai
dos abismos do mistério ardente,
Sangra
calvários infinitamente,
Para
eu rezar!
E
cantando,
E
lutando,
E
sonhando,
E
chorando,
E
rezando,
Farei
da cega luz que me alumia
A
luz espiritual do grande dia,
A
luz de Deus, a luz do Amor, a luz do Bem,
JUNQUEIRO,
Guerra (1997), Oração ao Pão, Oração à
Luz, Porto, Lello Editores.
quarta-feira, 6 de novembro de 2013
Émile Zola: A Taberna (1876)
Quando chegam os
días maus, estes não deixam de ser acompanhados por algumas noites agradáveis,
horas em que se amam as pessoas que se detestam.
ZOLA,
Émile (1972), La
Taberna, Barcelona, Credsa Ediciones.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Fernando Sylvan: Mensagem do Terceiro Mundo
Não tenhas medo de
confessar que me sugaste o sangue
E engravataste
chagas no meu corpo
E me tiraste o mar
do peixe e o sal do mar
E a água pura e a
terra boa
E levantaste a
cruz contra os meus deuses
E me calasse nas
palavras que eu pensava.
Não tenhas medo de
confessar que te inventasse mau
Nas torturas em
milhões de mim
E que me cavas só
o chão que recusavas
E o fruto que te
amargava
E o trabalho que
não querias
E menos da metade
do alfabeto.
Não tenhas medo de
confessar o esforço
De silenciar os
meus batuques
E de apagar as
queimadas e as fogueiras
E desvendar os
segredos e os mistérios
E destruir todos
os meus jogos
E também os
cantares dos meus avós.
Não tenhas medo,
amigo, que te não odeio.
Foi essa a minha
história e a tua história.
E eu sobrevivi
Para construir
estradas e cidades a teu lado
E inventar
fábricas e Ciência,
Que o mundo não
pode ser feito só por ti.
Fernando Sylvan (Díli 1917- Díli 1993)
T.S. Eliot: O Hipopótamo
(E quando esta epístola for lida entre vós
fazei com que seja lida também na Igreja dos
Laodiceanos)
O Hipopótamo de costas largas
Repousa sobre a barriga na lama;
Embora nos pareça tão firme
É meramente de carne e sangue.
A carne e o sangue são fracos e frágeis,
Susceptíveis de choque nervoso;
Ao passo que a verdadeira Igreja nunca falha
Porque tem por base um rochedo.
Os fracos passos de Hipopótamo podem errar
Ao compreender os fins materiais
Ao passo que a Verdadeira Igreja não passa de se mexer
Para colher os seus dividendos
O `pótamo não consegue alcançar
O mango na Mangoaeira;
mas frutos de romã e pêssego
Refrescam a Igreja vindos do ultramar.
No acasalamento a voz do hino
Denota inflexões estranhas e roucas
Mas todas as semanas nós ouvimos e louvamos
A Igreja, por ser una com Deus.
O dia do hipopótamo
É passado a dormir, à noite caça;
Deus trabalha de um modo misterioso -
A Igreja consegue dormir e comer ao mesmo tempo.
Vi o ´Popótamo levantar voo
Subindo das húmidas savanas,
E anjos implorantes à sua volta cantam
Louvores a Deus, em altos hosanas.
O sangue do Cordeiro vai lavá-lo bem limpo
E ele abrirá os braços celestiais,
No meio dos santos serám visto
Tocando numa harpa de ouro.
Será levado tão branco como a neve,
E beijado por todas as virgens mártires,
Ao passo que a Verdadeira Igreja fica cá em baixo
Embrulhada no velho nevoeiro de miasmas.
Laodiceanos)
O Hipopótamo de costas largas
Repousa sobre a barriga na lama;
Embora nos pareça tão firme
É meramente de carne e sangue.
A carne e o sangue são fracos e frágeis,
Susceptíveis de choque nervoso;
Ao passo que a verdadeira Igreja nunca falha
Porque tem por base um rochedo.
Os fracos passos de Hipopótamo podem errar
Ao compreender os fins materiais
Ao passo que a Verdadeira Igreja não passa de se mexer
Para colher os seus dividendos
O `pótamo não consegue alcançar
O mango na Mangoaeira;
mas frutos de romã e pêssego
Refrescam a Igreja vindos do ultramar.
No acasalamento a voz do hino
Denota inflexões estranhas e roucas
Mas todas as semanas nós ouvimos e louvamos
A Igreja, por ser una com Deus.
O dia do hipopótamo
É passado a dormir, à noite caça;
Deus trabalha de um modo misterioso -
A Igreja consegue dormir e comer ao mesmo tempo.
Vi o ´Popótamo levantar voo
Subindo das húmidas savanas,
E anjos implorantes à sua volta cantam
Louvores a Deus, em altos hosanas.
O sangue do Cordeiro vai lavá-lo bem limpo
E ele abrirá os braços celestiais,
No meio dos santos serám visto
Tocando numa harpa de ouro.
Será levado tão branco como a neve,
E beijado por todas as virgens mártires,
Ao passo que a Verdadeira Igreja fica cá em baixo
Embrulhada no velho nevoeiro de miasmas.
T.S. Eliot (1888-1965)
Murilo Mendes: Cantiga de Malazarte
Eu sou o olhar que penetra nas
camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo.
MENDES, MURILO (1994), Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar, s.l.
John Donne: A Pulga
Observa esta pulga, e repara nisto –
Quão pouco é o que me recusas -:
A mim sugou primeiro e agora
suga-te a ti,
E nesta pulga nossos dois sangues
se misturam.
Confessa: de tal não pode dizer-se
Que é pecado, ou vergonha, ou
desfloramento,
Portanto ela goza antes de
cortejar,
Saciada, incha com um sangue feito de dois,
Saciada, incha com um sangue feito de dois,
O que, enfim, é bem mais do que
ousaríamos.
Oh, espera. Três vidas poupa numa
pulga,
Onde nós quase – não, mais do que –
casados estamos:
Esta pulga é tu e eu, e isto aqui
É o nosso leito, o nosso templo
nupcial;
Embora os pais – e tu – protestem,
estamos juntos
E enclausurados nessas vivas paredes negras.
E enclausurados nessas vivas paredes negras.
Ainda que o uso
te autorize a matar-me,
A tal não se
acrescente o suicídio,
E o sacrilégio:
três pecados ao matar nós três.
Cruel e precipitada, já de púrpura
Manchas a tua unha com o sangue da
inocência?
De que poderia esta pulga ser
culpada
Senão dessa gota que chupou de ti?
Mas tu triunfaste, e afirmas que te
Não encontras, nem a mim, mais
fracos agora:
É
verdade. Então aprende como são falsos os medos:
Esta
mesma dose de honra, quando a mim te renderes,
Perderás
– igual à vida que a morte desta pulga te roubou.
Gente dentro de gente
Veste o tornado de menina
E não lhe dês um nome
Não o calces, sente apenas o corrimento da razão
lambe-o
Não a temos, a chuva de verão
Não é um girassol, torna-se um girassol a cada segundo que passa:
Um antigo farol lê o mar, um outro homem lê o mar
(gente dentro de gente)
Abraço o teu sono, um abraço sem braços
envolve a obsessão mais doce, são seis da manhã:
Se a procura é a nossa matéria, a sede é a nossa forma.
A multidão com o arco erguido sobre a azinheira, uma aguarela
O eco lambe-nos a cara e repete:
“definir poesia é dar as mãos”.
Guardei um hipermercado, um segredo,
Uma coisa qualquer debaixo da tua língua, nela fiz todas as perguntas, sabendo que a água era todas as respostas – Os segredos contam-se melhor debaixo dela.
Com a sede de contarmos uma história, puseram um barco em cima de nós:
A poesia prova deus,
ele sabe a gente…
Nuno Brito.
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