sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Amadeo de Souza-Cardoso




Amadeo de Souza-Cardoso (1997-1918).

Pedro Eiras: Substâncias Perigosas

Esconjuros e mentiras

            Uma ciência do erro.

            Sempre preferi ler textos obviamente errados mas cheios de possibilidades de pensamento – a textos certos que só repetem o que já sei.

            E o que se lê, ainda que seja errado, começa a tornar-se real, porque cada livro reinventa o mundo.

            Viver no mundo certo inventado pelo livro errado.

            O que interessa, de facto, é algumas operações. Não mais matéria, menos matéria, mais sumário, menos sumário. Interessa uma pequena operação de pensamento: inventar uma pequena nova torção para a realidade.

            Não confirmar nada: surpreender tudo.


Pedro Eiras, Substâncias Perigosas, Pedro Eiras, Livro do Dia.

Lars Von Trier: Medeia




Lars Von Trier (1988), Medeia.

José Cardoso Pires: O Delfim

 Falta uma vírgula na paisagem:

 E a tarde escorre sem estremecer. Nem um golpe de ar, nem um pássaro, um ruído ao menos a a descer dos montes pela estrada. Isto, no fundo, é morte. podia-se pôr uma cegonha na torre da igreja - seria a vírgula. um pescoço longo e curvo, espalmado no ar sobre o largo. As cegonhas pensam muito nos filhos, parece. Andam de terra em terra a pensar neles.

(...)

Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada-criança, como é hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de montanha. E seios, seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço, pelas nádegas. Inclusivamente, os braços são seios atravessados por dois ossos tenríssimos. "Jesus, o que são as coisas," queixa-se ela a todo o momento.
Com um corpo assim não podia deixar de ser uma criatura sofredora, maternal. Vemo-la sentada, formiga-mestra duma hospedaria de caçadores: toda ela transborda generosidade. O modestíssimo cheiro a sabão amarelo, e começamos a perceber uma música gentil lá no alto - a sua voz.


PIRES, José Cardoso (1998), O Delfim, Lisboa, Publicações Dom Quixote. 

André Domingues: o teu vestido


Agarro a tesoura porque estou apaixonado por tudo o que a tesoura pode fazer por mim. Num instante recordo os direitos e os deveres da tesoura. Os deveres: cortar, recortar, resumir. Os direitos: matar, magoar, interferir. Entretanto a tesoura confessa-me que está faminta. Já não corta há muito tempo, disse-me, com o olhar de lince dirigido ao teu vestido. A tesoura está mesmo desesperada, parece querer ganhar vida, faz acrobacias no ar, abre e fecha as suas pernas de bailarina e oferece a sua nudez e os seus serviços ao teu vestido. O teu vestido não fala, não se mexe, não reage porque tem medo de perder a virgindade do destino, mas, no fundo, o teu vestido já é curto e decotado o suficiente para perceber que a morte é uma alegoria, que nenhuma arma pode acrescentar nada à natureza do indivíduo e que o melhor é fechar os olhos e não resistir.


André Domingues (Inédito).

Manuel de Freitas: Nada de Nada

para o José Carlos Soares

Um dia, logo de manhã, entraremos
num cemitério e perguntarás a Antonia
Pozzi se estar morto é mais ou menos
triste do que estes dias arduamente sepultados.
Receando que saibas a resposta, beberei
com Lowry a primeira ou a última tequila,
na certeza de que ambos os adjectivos estarão
certos (um pouco, talvez, demasiado certos).

Assim possa a chuva apagar todos
os versos que escrevemos
para nada, sobre nada, contra nada,
à sombra imensa dos jacarandás
que floriam - distraídos, quase por engano -
no Rossio. E inundavam de luz (nunca
vi uma luz tão escura) as portas
e os umbrais deste cemitério assim.

FREITAS, Manuel (2007), Terra sem Coroa, Vila Real, Teatro de Vila Real.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Guerra Junqueiro: Oração à Luz (1904)

Claro mistério
Do azul etéreo!
Sonho sidéreo!
Luz!

Da Terra dorida
Alento e Guarida!
Fermento da vida,
Luz!

Eucaristia santa,
Vinho e pão que alevanta
Homem, rochedo e planta…
Luz!

Virgem ígnea das sete cores,
Toda abrasada de esplendores,
Mãe dos heróis e mãe das flores,
Luz!
Fiat harmónico e jucundo,
Verbo diáfono e profundo,
Alma do Sol, corpo do mundo,
Luz!

Luz-esp’rança, luz rútila da aurora,
Vida vibrando na ampliação sonora,
Vida cantando pela vida fora,
Luz!

Luz que nos dás o pão, ó luz amada!
Luz que no dás o sangue, ó luz doirada!
Luz que nos dás o olhar, luz encantada!
Bendita sejas, luz, bendita sejas!

Sejas bendita em nós, ó fonte de harmonia!
Sejas bendita em nós, ó urna de alegria!
Bendito seja o filho teu, o alvor do dia!
Perpetuamente, ó luz, ó mãe, bendita sejas!

*

A inabalável rocha taciturna,
Quando a electrize o teu deslumbramento,
Acora e sonha na mudez soturna…

Por ti se volve areia; e num momento
A área é lodo, é seiva, é fruto lindo,
É carne humana, é sangue, é pensamento…

Por ti a água exulta, anda bramindo,
Por ti rola do monte ao sorvedoiro,
E voa, em nuvens, pelo azul infindo…

Por ti orvalho: Cai no trigo loiro?
É pão e é hóstia … Cai na flor? Incenso,
Néctar, abelha, borboleta d’oiro…

Por ti flutua o ar, um mar imenso,
Prenhe de vidas invisíveis, onde
Todo o sonho da terra anda suspenso…

Ao teu hálito, ó luz, nada se esconde:
Brilhas! E a alma opaca da matéria
Das entranhas do globo te responde!...

Brilhas! E amor e dor, luto, miséria,
Doira-os a graça, a juventude, o encanto
Do teu manto de púrpura sidérea!

És tu que alumbras alegria e pranto:
No sorriso do herói clarão eterno,
Prisma de Deus na lágrima do santo.

Em teu fulgor genésico e materno
Surdem núpcias das campas viridente
E um novo abril palpita em cada Inverno…

Por ti suspiram, sem te ver, dormentes,
As almas vegetais, indefinidas
No mistério noturno das sementes…

Germinando por ti, por ti vestidas,
Sonham aroma, sonham forma e cor,
Em teu alvor magnético embebidas…

E esplêndidas de graça, enlevo e amor
Erguem-te, ó luz, um ai e luz adiante,
Aberto em beijo, idealizado em flor!...
Por teu frémito d’oiro, instante a instante,
O verme cego, enclausurado, imundo,
Gera a visão liberta e deslumbrante.

Por ti um sopro anímicoo e fecundo
Penetra o lodo, a rocha, a água, o ar,
Voa de esporo a esporo, e mundo a mundo…

Por ti a asa, o lábio, a mão, o olhar…
Por ti o canto e o riso e o beijo e a ideia…
Por ti o verbo ser e o verbo amar!...

A inextrincável, a infindável teia
Do sonho do universo em luz é urdida,
Em Luz vislumbra e misteriosa ondeia…

Suspensa em luz, da mesma luz nutrida,
Vai para Deus rolando eternamente
A dor, na eterna evolução da vida…

Homem, nuvem, granito, onda, serpente,
A rocha, o ar, o abutre, a folha d’hera,
O mundo, os mundos, tudo que é vivente,

Do lodo à águia, do metal à fera,
Da fera ao anjo, do covil à cruz,
Move-se tudo, existe e reverbera,

Sonhando, amando, palpitando em luz!...
***

E o coração a arder, que das alturas
Manda perpétua luz às criaturas,
Vive às escuras!

Seus infernos de fogo a trovejar
Dão aurora e luar.

Sua angústia sem fim, que não descansa,
É mãe do beijo e mãe da esp’rança.

Dos ais candentes da sua dor
Brota o sorriso e brota a flor.

Bendito seja!

Arde por nós a toda a hora,
Sofre por nós a toda a hora,
Por nós morrendo a toda a hora,
Continuamente!

Bendito seja!

O seu tormento é o nosso alento,
Sua paixão cruel e dolorida
A nossa vida.

Bendito seja! bendito seja!

Bendito o mártir, cujo sangue a flux
Alaga os mundos de marés de luz!

Bendita a horrenda e trémula agonia,
Cujos suspiros são o alvor do dia!

Bendita a morte, em cuja essência etérea
Ondula para Deus nossa miséria!

Bendito seja!
Bendito seja!
Bendito seja!
Bendito vezes mil o fecundo esplendor,
Nossa vítima e nosso redentor!...

***

Homem!
Quando a alvorada alumie o horizonte,
Ergue-te em pé, ergue essa fronte!
Ergue-te livre, em pé, na terra escrava,
Em que hás sido mudez caliginosa
E onda e rocha e verme e fera brava…
Ergue essa fronte humana misteriosa,

Enigmática flor crepuscular,
A flor que chora que sorri, que pensa,
A flor de dor, que a natureza imensa
Milhões de anos levou a arquitetar!...
Ergue-te calmo sobre a terra obscura,
Filho de Satanás, pai de Jesus!
E no enlevo, no mimo, na candura
Da madrugada angelizada e pura,
Faz d’olhos tristes, o sinal da cruz:
Uma cruz imortal em pensamento,
Uma infinita cruz, cheia de luz,
Aberta aos mundos num deslumbramento…

Cruz, que vindo de deus,  trespasse o inferno,
Cruz abarcando toda a imensidade,
Cruz onde um Cristo, o Amor Eterno,
Chore sem fim a dor da Eternidade!...
E extático, enlevado, absorto, imerso
Na harmonia inefável amplidão,
Ébrio de Deus, Ungido de universo,
Homem, levanta à luz esta oração:

Monstro de dor nos ermos do infinito,
Ó Sol crucificado, ó Sol bendito!

Tua carne de fluidos e metais
É a carne embrião do mundo todo,
Das águas e das rochas e do lodo,
Que foram nossas mães e nossos pais!
Por isso lanças para nós teu grito,
Por isso voam para nós teus ais!

São os teus ais sem fim de moribundo
A luz, esp’rança que electriza o mundo.

O oiro divino das manhãs formosas,
Que os orbes veste de sendais e rosas,
Como se fossem pobrezinhos nus,
É o estertor e a dor do teu fadário,
É sangue a espadanar do teu calvário,
A jorrar do teu corpo e da tua cruz!

Bendito o Cristo-Sol na crua ardente,
O monstro mártir, que infinitamente
Por nós expira, soluçando luz!...

Ó luz, ó luz, o mundo que te devora,
Mas revives no mundo a toda a hora.

Morres para nascer a todo o instante,
Mais perfeita, mais pura e mais brilhante.

Sim, mais brilhante: a claridade
Vem só do amor e da verdade.

Tu revives, ó luz, mais amorosa
Na água fluida, trémula e viscosa.

Na água fecundante e conjugal,
Mãe do homem, do verme e do cristal.

Na água móvel, mágica, indecisa,
Onde a vida fermenta e fraterniza…

Por onde o sangue a e seiva, ébrios d’amor,
Circulam para a ideia ou para a flor!

Mas a água te absorve e te agradece,
Nunca te esquece, ó luz, nunca te esquece:

Almas da água, quando se casaram,
Foi com beijos de luz que se beijaram.

***

Tu revives na terra áspera e dura,
Que é leite e mel na boca da verdura.

Leite e mel da raíz, do sugadoiro,
Que mama fragas e dá frutos d’oiro.

Sim, revives mais pura, muito mais,
No granito e no lodo e nos metais.

Matéria bruta
Não vê, não fala, não escuta,

Não pode amar,
Sem se tocar.

Quando se toca é que se liga,
Tem de ser densa para ser amiga.

Na rude e baixa natureza
O amor é solidez, a afeição é dureza.

E por isso o cristal
É um verdadeiro santo mineral.

Rochedo ou bronze
Mantém na estátua o génio criador,
Porque rochedo e bronze
São dois blocos d’amor.

O sonho ideal e genial, sonho impoluto,
Não se esvaiu, porque fundiu
No sonho bruto…

Fragas imóveis, taciturnas,
Que nós pisamos, caminhando,
São almas lentas, ínfimas, nocturnas,
Cegas e surdas, que se estão beijando!...

A pedra, ó luz, te absorve e te agradece,
Nunca te esquece, ó luz, nunca te esquece:

Porque as pedras, inertes e geladas,
Já foram sóis, estrelas, alvoradas…

*
Tu revives, ó luz, mais santa,
N’alma da planta.

Alma já feita de infinitas almas,
Vida Gerada de infinitas vidas,
Mas presas todas, palpitando unidas
Numa só alma!

Almas que existem para a mesma ânsia,
Que a mesma ardente aspiração eleva…
Sonhando, amando, ouvindo-se a distância,
Folha livre no azul, raiz muda na treva…

Almas aéreas, ondulantes,
Ébrias de cor e de esplendor,
Ao Deus ignoto erguendo as verduras radiantes,
Ao Eterno evolando emanações de flor…

E flor doirada e folha verde e troncos nus
Condensam chamas, arquitectam luz!

Incorporam em luz o infindável desejo,
Edificam em luz a essência misteriosa
Que, suspiro a suspiro e beijo a beijo,
Vai do líquen ao cedro e vai do musgo à rosa!...

Ervas, florestas, pâmpanos, rebentos,
Cálices d’oiro, bosques a noivar,
São esculturas em deslumbramentos,
Sonhos urdidos com a luz e o ar!...

*

E inda mais bela que na Primavera
Ressuscitas ó luz, num verme ou numa fera,
Que já tem sangue e tem olhar!

Luz dardejante!
Graça da cor! alvor, fulgor, esplendidez!
Tu és escuridão, és uma cega errante…
Cega nocturna e deslumbrante,
Porque alumias e não vês!

Esses olhos de estrelas vagabundos,
Olhos de luz tão viva que incendeia,
Não descobrem nem páramos, nem mundos,
Não conhecem nem flor, nem grão d’areia!
E uma alimária torva, rastejando,
Vê as nuvens e os pássaros em bando,
Vê da noite o clarão,
E na centelha exígua da pupila
Junta o braseiro d’astros que rutila,
Imensurável na amplidão!

O olho ardente
É luz prodigiosa, é luz consciente.

Olhar
É distinguir, unir, fraternizar
O sonho do universo,
Tudo o que anda disperso
Ou no lodo ou na rocha ou na água ou no ar...

E, dilatando o amor,
Dilata-se a visão, cresce a união, cresce o esplendor.

Olhos perfeitos,
D’eterna luz,
Só os olhos divinos dos eleitos.
Só os olhos de Buda ou de Jesus.
***

E ainda mais santa e mais harmoniosa
Que nos olhos da pomba ou no cálix da rosa,
Tu revives, ó luz, na música dos ninhos,
Na alegria infantil dos passarinhos.

A ave canta,
Sonorizando aurora na garganta...

Verdilhão, toutinegro, rouxinol
Declamam luz, gorjeiam sol.

Morre a canção na escuridão...

Canção alada!
Tu és a voz idealizada
Da natureza flórida e fecunda,
Ébria, bebendo oceanos d’alvorada...
Toda a alma da luz, que a terra inunda,
Todo o anseio da terra ao fulgor imortal,
Cantam na voz da cotovia,
Cristalizam na límpida harmonia
Dum beijo d’ouro ideal!...

O mundo, ó luz, te absorve e te devora,
Mas revives no mundo mais intensa,
Mais próxima de Deus a cada hora,
Nas vidas todas desta vida imensa,
Vidas sem fim, almas sem fim,
Que o segredo do amor junta e condensa,
Por meus olhos magnéticos, em mim!

Lampejam no meu corpo, humanizadas,
Mortas constelações e mortas alvoradas.

Desde que a Vida me gerou em dor
E fui éter, estrela, água, montanha e flor;

Desde que verme obscuro andei a rastros,
E lobo em pé, sob o clarão dos astros,

Ao verter uma lágrima ligeira,
Me senti homem pela vez primeira;

Quantos sóis, nebulosas, firmamentos,
Varridos já n’asa dos ventos,

Não deram luz ao lodo triste,
Que em mim, sonhando e suspirando, existe?!...

Todo o meu corpo é luz esplendorosa,
Sou um hino de luz religiosa,
Gravitando na órbita de Deus...
Milhões d’auroras riem no meu canto,
Ondas d’estrelas brilham no meu pranto,
Pélagos de luas há nos olhos meus!...

Esta carne, este sangue, esta miséria,
E este ideal imortal que me conduz,
Já foram brasas na amplidão etérea,
Por isso exultam devorando a luz...

Vive de luz minha alegria e minha mágoa,
Bate na luz meu coração,
Fulge na luz o meu olhar...
Ó luz tremente, eu bebo-te na água,

Ó luz ardente, eu como-te no pão,
E calco-te na lama e sorvo-te no ar!...
Ó luz! Luz! Luz!
Como te hei-de remir e te hei-de consolar?!...

Luz que nos enches de alegria,
Luz que desvendas a harmonia,
Que és o esplendor e a cor da natureza,
Farei de ti, luz dum só dia,
A luz perpétua da Beleza!

Luz que iluminas a existência,
Luz que propagas a evidência,
Que dissolves o erro e a escuridade,
Farei de ti, da tua essência,
A luz augista da Verdade!

Luz, onde os olhos e ond eo pensamento
Casam a estrela, o verme, a rocha, a água, o vento,
Homens e monstros, a canção e a dor,
Farei de ti, luz dum momento,
A luz eterna, a luz divina, a luz do Amor!

Farei de ti a luz do Amor, que não se apaga,
A luz que tudo alaga
E tudo vê e tudo esquece...
A luz que nos deslumbra e irradia
Dum suspiro, dum ai, duma agonia,
Dum beijo humilde ou duma prece...

A luz, em cuja glória idealizante,
O braseiro dos astros rutilante
É cinza escura e sepulcral,
E a apoteose imensa da alvorada
Uma lúgubre e lenta fumarada,
Sonho torvo da dúvida e do mal...

A luz que transfigura e que converte
O César deslumbrante em poeira inerte
E o vagabundo, a rastros, num clarão...
A luz que acende lágrimas doridas
Em estrelas eternas e floridas,
Em jardins de candura e de perdão!...

Luz onde tudo vai boiando imerso,
Luz Espírito e Alma do universo,
Sol dos sóis, incriado e criador...

Luz da misericórdia e lz de esp’rança,
Luz de infinita bem-aventurança,
Manhã que rompe da infinita dor...

Ó luz dos astros, cega luz corpórea,
Que, revivendo, és água transitória,
Fraguedo e areia, podridão e planta,
Cálix que murcha e que a nortada leva,
Olhar de brasas que se volve em treva,
Gorjeio lindo que uma hora canta,
Em meu sangue exaltada e sublimada,
Em meu divino ideal crucificada,
À paz suprema chegarás por mim:
Serás a luz do Espírito amoroso,
Serás na eterna dor o eterno gozo,
A beatitude harmónica e sem fim!

Oremus:

Cândida luz da estrela matutina,
Lágrma argântea na amplidão divina,
Abre meus olhos com o teu olhar!

Viva luz das manhãs esplendorosas,
Doira-me a fronte, inumda-me de rosas,
Para cantar!

Luz abrasando, crepitando chama,
Arde em meu sangue, meu vigor inflama,
Para lutar!

Luz das penumbras a tremer nas águas,
Vela as montanhas dum vapor de mágoas,
Para sonhar!

Luz dolorosa, branda luz da Lua,
Embala, embebe a minha dor na tua,
Para chorar!

Luz das estrelas, vaga luz silente,
Cai dos abismos do mistério ardente,
Sangra calvários infinitamente,
Para eu rezar!

E cantando,
E lutando,
E sonhando,
E chorando,
E rezando,

Farei da cega luz que me alumia
A luz espiritual do grande dia,
A luz de Deus, a luz do Amor, a luz do Bem,
A luz da glória eterna, a luz da luz, amén!



JUNQUEIRO, Guerra (1997), Oração ao Pão, Oração à Luz, Porto, Lello Editores.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Émile Zola: A Taberna (1876)


 Quando chegam os días maus, estes não deixam de ser acompanhados por algumas noites agradáveis, horas em que se amam as pessoas que se detestam. 


ZOLA, Émile (1972), La Taberna, Barcelona, Credsa Ediciones. 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Fernando Sylvan: Mensagem do Terceiro Mundo

Não tenhas medo de confessar que me sugaste o sangue
E engravataste chagas no meu corpo
E me tiraste o mar do peixe e o sal do mar
E a água pura e a terra boa
E levantaste a cruz contra os meus deuses
E me calasse nas palavras que eu pensava.

Não tenhas medo de confessar que te inventasse mau
Nas torturas em milhões de mim
E que me cavas só o chão que recusavas
E o fruto que te amargava
E o trabalho que não querias
E menos da metade do alfabeto.

Não tenhas medo de confessar o esforço
De silenciar os meus batuques
E de apagar as queimadas e as fogueiras
E desvendar os segredos e os mistérios
E destruir todos os meus jogos
E também os cantares dos meus avós.

Não tenhas medo, amigo, que te não odeio.
Foi essa a minha história e a tua história.
E eu sobrevivi
Para construir estradas e cidades a teu lado
E inventar fábricas e Ciência,
Que o mundo não pode ser feito só por ti.


Fernando Sylvan (Díli 1917- Díli 1993)

T.S. Eliot: O Hipopótamo

(E quando esta epístola for lida entre vós
fazei com que seja lida também na Igreja dos
Laodiceanos)


O Hipopótamo de costas largas
Repousa sobre a barriga na lama;
Embora nos pareça tão firme
É meramente de carne e sangue.

A carne e o sangue são fracos e frágeis,
Susceptíveis de choque nervoso;
Ao passo que a verdadeira Igreja nunca falha
Porque tem por base um rochedo.

Os fracos passos de Hipopótamo podem errar
Ao compreender os fins materiais
Ao passo que a Verdadeira Igreja não passa de se mexer
Para colher os seus dividendos

O `pótamo não consegue alcançar
O mango na Mangoaeira;
mas frutos de romã e pêssego
Refrescam a Igreja vindos do ultramar.

No acasalamento a voz do hino
Denota inflexões estranhas e roucas
Mas todas as semanas nós ouvimos e louvamos
A Igreja, por ser una com Deus.

O dia do hipopótamo
É passado a dormir, à noite caça;
Deus trabalha de um modo misterioso -
A Igreja consegue dormir e comer ao mesmo tempo.

Vi o ´Popótamo levantar voo
Subindo das húmidas savanas,
E anjos implorantes à sua volta cantam
Louvores a Deus, em altos hosanas.

O sangue do Cordeiro vai lavá-lo bem limpo
E ele abrirá os braços celestiais,
No meio dos santos serám visto
Tocando numa harpa de ouro.

Será levado tão branco como a neve,
E beijado por todas as virgens mártires,
Ao passo que a Verdadeira Igreja fica cá em baixo
Embrulhada no velho nevoeiro de miasmas.


T.S. Eliot (1888-1965)

Murilo Mendes: Cantiga de Malazarte

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo.


MENDES, MURILO (1994), Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar, s.l.

John Donne: A Pulga

Observa esta pulga, e repara nisto –
Quão pouco é o que me recusas -:
A mim sugou primeiro e agora suga-te a ti,
E nesta pulga nossos dois sangues se misturam.
Confessa: de tal não pode dizer-se
Que é pecado, ou vergonha, ou desfloramento,
Portanto ela goza antes de cortejar,
Saciada, incha com um sangue feito de dois,
O que, enfim, é bem mais do que ousaríamos.

Oh, espera. Três vidas poupa numa pulga,
Onde nós quase – não, mais do que – casados estamos:
Esta pulga é tu e eu, e isto aqui
É o nosso leito, o nosso templo nupcial;
Embora os pais – e tu – protestem, estamos juntos
E enclausurados nessas vivas paredes negras.
Ainda que o uso te autorize a matar-me,
A tal não se acrescente o suicídio,
E o sacrilégio: três pecados ao matar nós três.

Cruel e precipitada, já de púrpura
Manchas a tua unha com o sangue da inocência?
De que poderia esta pulga ser culpada
Senão dessa gota que chupou de ti?
Mas tu triunfaste, e afirmas que te
Não encontras, nem a mim, mais fracos agora:
            É verdade. Então aprende como são falsos os medos:
            Esta mesma dose de honra, quando a mim te renderes,
            Perderás – igual à vida que a morte desta pulga te roubou.


 DONNE, John (1995), Poemas Eróticos, Lisboa Assírio & Alvim.

Gente dentro de gente


Veste o tornado de menina
E não lhe dês um nome
Não o calces, sente apenas o corrimento da razão
lambe-o
Não a temos, a chuva de verão
Não é um girassol, torna-se um girassol a cada segundo que passa:
Um antigo farol lê o mar, um outro homem lê o mar
(gente dentro de gente)
Abraço o teu sono, um abraço sem braços
 envolve a obsessão mais doce, são seis da manhã:
Se a procura é a nossa matéria, a sede é a nossa forma.
A multidão com o arco erguido sobre a azinheira, uma aguarela
O eco lambe-nos a cara e repete:
“definir poesia é dar as mãos”.
Guardei um hipermercado, um segredo,
Uma coisa qualquer debaixo da tua língua, nela fiz todas as perguntas, sabendo que a água era todas as respostas – Os segredos contam-se melhor debaixo dela.
Com a sede de contarmos uma história, puseram um barco em cima de nós:
            A poesia prova deus,
 ele sabe a gente…


Nuno Brito.