segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Antero de Quental: Panteísmo

I

Aspiração... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa...
A isto chamo eu vida: e, d’este modo,

Que mais importa a forma? Silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Em homem igualmente e astro e rosa!

A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da deveza,
Por certo entrevê Deus – seu olho baço

Foi feito para ver brilho e beleza...
E se ruge, é que a agita surdamente
Tia alma turva, ó grande natureza!

Sim, no rugido há uma vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar ave inocente...

Há um desejo intenso, que alevanta
Ao mesmo tempo o coração ferino,
E o do ingênuo cantor que nos encanta...

Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! e belo e augusto.
Quer se equilibre em paz no mudo hino

Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo;

Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade...

É sempre eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana...

É sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, evolve, ínfimo e imenso!

Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!

Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!

Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!

Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível,
Onde as formas do Ser se estão fundindo...

Abre teu cálix, rosa imarcescícel!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o vôo inacesssível!

Ide! crescei sem medo! Não e avara
A alma eterna que em vós anda e palpita...
Onda, que vai e vem e nunca pára!

Em toda a forma o Espírito se agita!
O imóvel é um deus, que está sonhando
Com não sei que visão vaga, infinita...

Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!

Essência tenebrosa e pura... casta
E todavia ardente... eterno alento!
Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...
Choras na voz do mar... cantas no vento...

II

Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através das soidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.

Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando...

Que imensa voz! que prédicas estranhas!
E como freme com terrível vida
A asa que o libra em extensões tamanhas!

Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,

Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!

Ei-lo o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!

Quando as formas o orbe tateando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do abismo, vacilando;

Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava;

Já ele era então livre! e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse...
Já dominava o espaço, onipotente!

Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o gérmen misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.

III

Fecundou!... Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos o seu fado,

O pó cresce ante mim... engrossa... alteia...
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se idéia!

Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
Invisível está... sendo tamanho!

Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra o imortal segredo!

Surgir! surgir! — é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmosíssima Babel!

Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! Atração e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito —
...................................................................

Eis quanto me ensinou a voz do vento.

Antero de Quental, Odes Modernas, (1864).


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