Agarro a tesoura porque estou apaixonado por tudo o que a tesoura pode fazer por mim. Num instante recordo os direitos e os deveres da tesoura. Os deveres: cortar, recortar, resumir. Os direitos: matar, magoar, interferir. Entretanto a tesoura confessa-me que está faminta. Já não corta há muito tempo, disse-me, com o olhar de lince dirigido ao teu vestido. A tesoura está mesmo desesperada, parece querer ganhar vida, faz acrobacias no ar, abre e fecha as suas pernas de bailarina e oferece a sua nudez e os seus serviços ao teu vestido. O teu vestido não fala, não se mexe, não reage porque tem medo de perder a virgindade do destino, mas, no fundo, o teu vestido já é curto e decotado o suficiente para perceber que a morte é uma alegoria, que nenhuma arma pode acrescentar nada à natureza do indivíduo e que o melhor é fechar os olhos e não resistir.
André Domingues (Inédito).
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