I.
O pastor alemão veio morar para o centro
onde a releitura do ódio parece a releitura do amor
trouxe na viagem e na língua ainda o sabor das lágrimas de Heidi
elas nunca tocaram o chão —
a meio da queda ele bebia-as
como um limite, doces e citrinas, sabiam a gin tónico com muito limão
o caminho em direção ao centro, a carreira de professor que ensina as estações
o medo vem a seguir ao outono e o desejo a seguir ao inverno
mas os ciclos são interiores: como as estações
a meio da queda o frio congela as lágrimas,
são agora flocos de neve que caem dos olhos de Heidi, parecem estrelas
cobrem os soldadinhos de chumbo de um manto branco.
II.
Despe Sebald… alguém
não é homem nem mulher
— porque os géneros mentem —
a sua cara é feita de traição,
de traição os nervos, o contorno do queixo,
o contorno das orelhas,
de traição os nervos,
o viso, a expressão,
de traição também o vento quente que lhe bate na cara.
Tem um derrame nos olhos por ter visto de mais,
e em todos os glóbulos a febre — vermelha e branca,
branca e branca, como a ficha dos homens que fugiram —
desenha a lápis um fundo onde morar
na expressão um afogamento interior.
Desaparece como personagem, Heidi
no lugar dela, uma memória que acende os olhos
o derrame do centro
para onde a memória foi morar
ele ou ela disfarçada de noite, porque os géneros mentem,
congela na descida,
o cair decidido no chão, rotundo,
os nervos coloridos disfarçados de noite.
III.
Puseram uns patins no pónei branco
e empurram-no para cima do lago congelado
os seus movimentos numa dança de susto,
o arfar do potro, o medo preso aos tendões
uma respiração nervosa diz-lhe que sobreviva —
o sangue a correr rápido
com o chão a fugir-lhe por baixo das patas,
o espectador era só um: Toda a Gente.
O desenho que ficou no gelo, as marcas dos patins,
da tração, do espasmo, da dança dos reflexos,
as asas de uma borboleta
no meio de um livro
o último leitor fecha-o,
noutra página um trevo de quatro folhas,
outros amuletos ainda
ganham vida dentro da Montanha Mágica.
IV.
Se nas mãos o mensageiro traz uma vela acesa
e se o mensageiro sofre de insensibilidade motora,
não dá conta que ela lhe queima as mãos
e de arder todo o mensageiro se faz nova mensagem
a expressão feita de muitas somas,
uma sede de novo, foi toda para os olhos,
desenha a linha da vida, o lápis, o pulso, o traço seguro
o fotógrafo da realidade pousa a máquina, sinal de abandono
tem só agora a retina e no branco da parte de trás dos olhos,
as duas asas da borboleta, invertidas,
afogadas na representação da órbita
o colecionador desta realidade faz uma nova cartografia do espaço,
mas tem de ser ágil, a terra treme e muda muito rápido,
surgem novas penínsulas, novas ilhas, novos medos onde antes era terra,
e ao cartógrafo são exigidos reflexos rápidos,
porque também o mapa lhe foge por baixo das mãos.
o pulso seguro desenha a terra que treme
só a velocidade lhe é permitida, como salvação e nela
a releitura do ódio parece-se com a releitura do amor.
Talvez por isso ele tenha ido morar para o centro.
V.
De todos os frutos se destila o esquecimento
de todos os medos se destila a Crença —
os dentes alinhados transmitem coragem
os nervos tão seguros, os braços a remarem
por canais que abrimos e não se fecham
dos teus olhos destilo uma vontade nova,
todo o desejo, toda a viagem em nova anatomia
a rasgar o universo à escala humana.
A minha obsessão por braços, destilo das tuas mãos o caminho.
Da tua sede a minha sede, da tua língua a minha vigília.
VI.
Na anatomia a minha obsessão por braços
na geografia a minha obsessão por penínsulas:
aquilo que entra
e depois dos braços, as mãos, e depois os dedos
extremidades, pontas que recebem e dão, por isso perecíveis, vulneráveis.
E depois penínsulas cada vez mais finas e estreitas,
paredões, finíssimas línguas de areia que entram pelo mar:
parecem dedos, os faróis,
pescadores solitários com a lancheira ao lado, namorados
aqui nas pontas recebe-se e leva-se para o centro
ali um caminho ou uma artéria fina
em direção ao coração,
ao núcleo
ele pede a sensação que as pontas lhes dão.
As flores roxas fecham-se à noite e as flores amarelas fecham-se à noite.
VII.
Os soldadinhos de chumbo que o pastor alemão deixou no chão
cobertos pelo manto branco da neve que continua ainda a cair
o frio foi todo morar para dentro, nos ossos, nas pontas dos dedos.
Não é só a máquina que filtra mas também os olhos
deles nevam as lágrimas ou as estrelas
e elas voltam a subir para desenhar as nuvens do fundo,
também da queda se faz subida:
já não vertical, mas um espalhar-se contínuo infiltra-se em todo o lado.
Não sei de que ângulo a vi partir
subia
branca era a montanha
um moinho no cimo, um novelo dentro do moinho
um cão a guardar o moinho, um pastor alemão
a cauda a abanar assim que a viu, o riso foi todo para os homens
o resto da natureza ajuda a desenhá-lo
o que vi na tua cara
mais Deus que qualquer outra coisa
mais Criador do que tudo o branco cruza o branco.
Alguém me perguntou: de que falamos desde que nos conhecemos?
Os faróis parecem dedos.
Nuno Brito.
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