quarta-feira, 31 de julho de 2013

Um Amor de Swann


Não conhecemos a nossa própria felicidade. Ninguém é tão desgraçado quanto se crê. [Discurso de Swann]

Marcel Proust, Um Amor de Swann.


Fanny Owen


As grandes obras nascem assim dum sujo parto entre fezes e urina.

Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen.


terça-feira, 30 de julho de 2013

Luis Buñuel


Não me parece nem bem nem mal

Eu creio que às vezes nos contemplam
pela frente ou por trás dos costados
uns olhos rancorosos de galinha
mais terríveis que a água apodrecida das grutas
incestuosos como os olhos da mãe
que morreu no patíbulo
pegajosos como um coito
como a gelatina que devoram os abutres
eu creio que ei-de morrer
com as mãos afundadas no lodo dos caminhos
eu creio que se me nascesse um filho
ficaria a olhar eternamente

as bestas que copulam aos entardeceres.

                                                                                                           Luis Buñuel.
.

Luís Miguel Nava: Falésias


Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual o faço vir como um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-nos os passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.

Luís Miguel Nava.



segunda-feira, 29 de julho de 2013

K. Canguru

                                                                    
Vives no desejo de quem te quer: A casa mais ampla: Ainda em expansão.

I.
O meu amigo trabalhava na Google, andava num carro a filmar a Austrália. O carro da Google levantava o pó vermelho do deserto e a câmara filmava as nuvens que se formavam; às vezes ia ter com Canguru e lia-lhe “O Principezinho”.

II.
 O meu amigo foi apanhado pela policia do deserto a conduzir com álcool no carro da empresa. Prenderam o meu amigo numa prisão do deserto. Depois soltaram o meu amigo e ele foi para o aeroporto. Entrou num avião - O avião foi para a América.
Quando estavam por cima da estátua da Liberdade as hospedeiras disseram para apertarem os cintos e os meninos olharam pela janela para ver a América. Uma rapper feminista de Manhattan despertava e olhava para o avião da janela. Regou as flores enquanto tomava um Nescafé na chávena colorida. Escreveu num guardanapo que “Os sonhos americanos são os mais húmidos”.

III.
Canguru sentia-se sozinho no meio da Austrália porque o seu amigo tinha-se ido embora.
Canguru tinha só uma pata porque tinha pisado uma mina com a outra. O meu amigo ligou-lhe a pata doente mas três dias depois o veterinário do deserto cortou-lhe a pata doente. O meu amigo comprou uma pantufa cor-de-rosa e calçou a pantufa ao Canguru. Meteu-lhe algodão dentro das orelhas peludas para não ouvir as explosões. Comprou uns phones cor-de-rosa e felpudos e meteu-os nas orelhas do Canguru, ligou-os a um mp3 e meteu o mp3 na bolsa do Canguru. Meteu também na bolsa do Canguru uma carta de amor de uma antiga namorada de Melbourne, um santinho de Amsterdão, um mapa da Austrália bem dobrado e um girassol que ficava metade de fora. Meteu também um trevo de quatro folhas dentro do “Principezinho” e meteu também “O “Principezinho” dentro do bolso do Canguru – Toma, isto é tudo o que tenho, se te sentires sozinho e com medo, vai a uma estação de serviço e pede a um gasolineiro que te tire do bolso o livro e te leia até não teres mais medo, os gasolineiros quase não têm trabalho, só passa um camião de duas em duas horas, entretanto os gasolineiros dormem e esperam os Cangurus. Lembra-te que a noite já não existe, já sabes que às vezes o céu fica um bocado escuro, acontece todos os dias quando o sol se põe mas não é noite – Disse ao Canguru e foi trabalhar para a  ONU. O Canguru saltava com a pantufa e dançava a música que lhe entrava nos phones cor-de-rosa.
. Canguru tinha medo da noite por isso dormia de dia e vivia de dia. Saltava com a pantufa cor-de-rosa todo o dia e não dormia porque à noite não havia noite. Os faróis dos camiões iluminavam o Canguru.
Às vezes sonhava que saltava por cima dos arrozais do Vietname e por cima dos campos de algodão da Carolina do Norte, pelos campos de papoilas do Afeganistão, ao lado dos moinhos de La Mancha, por cima dos charcos que rodeiam o Nilo. Uma noite sonhou que saltava em Angola e pisou uma mina.
O mapa da Austrália estava dentro da bolsa de Canguru e parecia uma partitura em braille. Os meninos cegos do Mississípi liam a partitura em Braille e a música sabia às virilhas das irlandesas, sabia a whisky, a casaco de pele de búfala e gasolina. Canguru saltou na pata única até ao posto de gasolina mais perto “Dirty Old Town” estava em repetição – os phones cor-de-rosa, o gasolineiro a dormir. Não passava nenhum camião. O sol estava muito forte, uma mancha de gasolina fazia um pequeno arco-íris no asfalto sobreaquecido. Uma borboleta monarca com as asas às riscas negras e vermelhas dançava por cima hipnotizada por este efeito ótico. Só tinha mais dois dias de vida … Podia perdê-lo com a poesia. Não havia mãos humanas e despertas para tirar o livro da bolsa de Canguru, nem respirações seguras e pulsos fortes que o segurassem, bocas que lessem o “Principezinho” para matar as saudades ao Canguru.

IV.
 Enquanto isso o meu amigo limpava os corredores da ONU e os escritórios da ONU e os minibares da ONU, passava muita lixivia no chão e limpava o chão com uma esfregona. Com muita lixivia, a ONU cheirava à campa da Rainha de Inglaterra. Alguém contava ao meu amigo que as alucinações olfativas dos esquizofrénicos e doentes com psicoses tóxicas são as mais perigosas. O meu amigo lembrou-se que tinha deixado uma pastilha de uma droga sintética dentro da bolsa do Canguru. Pousou a esfregona dentro do balde, entrou num dos gabinetes de um assistente do Secretário-Geral. No chão viu um papel perdido. Pegou nele – Um documento que legitimava a invasão de um país da Ásia Menor. Leu-o e pensou no Canguru, que música é que ele estava a ouvir? Gravou mais de cem músicas no MP3 que lhe deixou na bolsa em repetição: Bossa Nova, Cumbia Andina, Reggaeton, Congotronics, forró, cantares búlgaros, música de intervenção e os cem melhores êxitos do Rock. Ou estaria a ouvir as confissões de um gasolineiro alcoólico? Leu no documento as assinaturas de todos os membros do Conselho Geral. Pôs o documento no bolso. E foi para o Aeroporto. O avião levou-o até Sidney e uma camioneta levou-o até ao Canguru. Abraçou-o e meteu dentro da bolsa dele o documento. Os secretários do Secretário-Geral da ONU procuravam o documento em todos os gabinetes da ONU. A guerra não podia começar enquanto não fosse descoberto documento e as noites não caiam. Foram contratados outros secretários para procurarem o documento. A guerra não podia começar enquanto não aparecesse o documento. Tinha de ser redigido outro e tinha de ser assinado outra vez pelos representantes dos países que entretanto já tinham regressado aos seus países. Assim a solução era marcar outra conferência geral – o que ia demorar pelo menos três meses e teria de se admitir o erro.
 Enquanto isso o meu amigo abraçava o Canguru. Beijou-o… no calor do beijo meteu-lhe a mão na bolsa … o fundo da bolsa, húmida e quente, parecia não ter fundo. Ali o meu amigo afogou a mão, perdeu a mão no seu fundo – como um abraço sem braços – pensou enquanto os helicópteros desciam. Os hélices rápidos rodearam os dois amigos.


***


Nuno Brito

domingo, 28 de julho de 2013

José Régio: Soneto de Amor

 Não me peças palavras, nem baladas, 
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., — unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... — abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce





Beatriz Hierro Lopes


Respirar fundo. Arejar os olhos na roupa estendida sobre as cordas – pudesses ser simples como uma corda atravessando a noite inteira. Pousar a cabeça nos ombros de um amigo e dizer-lhe, bem fundo, um sorriso. Guardar duas mãos que seguraram o mesmo guarda-chuva. Dizer: amo-te a uma passadeira suficiente larga para encolher o horizonte dos meus passos em branco. Enterrar a infância nas raízes de um salgueiro e beijar, sem medo, boa noite mãe, boa noite pai. Dar às mãos crença maior que todo este chão. Deixar que o chão me leve até onde possa regressar e, ao regressar, ter chão que chegue para todo o tempo que trago entre as mãos. Adorar a boca num velho pregão que é garganta da rua, grito harmónico do cego por quem passo e que me diz: há tantas flores belas no meu jardim. Lavar solidões na margem do rio; dizer, nunca mais, para de seguida poder dizer, mas só mais uma vez. Rir pássaros que ficarão por aqui todo este inverno. Dar partidas e chegadas ao coração, ensinar-lhe os horários por que se vão os comboios. Deixar-lhe as palavras que chegarão para o salvar do silêncio.


                                                                                                                         Beatriz Hierro Lopes.


terça-feira, 23 de julho de 2013



As flores nunca darão boa literatura enquanto forem vivas ...


Beatriz Hierro Lopes, in É quase Noite. Lisboa: Averno, 2013.


segunda-feira, 22 de julho de 2013

Raquel Nobre Guerra


Barcos, Livros, Bicicletas


O nosso amor é belo
como as viagens de Inverno
que nunca fizemos juntos,
como os países quentes
que não visitámos.
É belo como os comboios perdidos
no último segundo,
ou as pequenas cidades portuárias
descobertas por acaso.
Belo como mapas rasgados
a que faltam as linhas das estradas secundárias,
como montanhas cobertas de nevoeiro
em dias de calor,
barcos numa baía deserta,
livros cheios de areia,
bicicletas sem travões nem destino.
Belo como o sol
que vai morrer depois de nós
daqui a cinco mil milhões de anos
e belo como o sopro selado
do coração das coisas.
É assim o nosso amor. Tão belo,
tão claro, tão puro
que, de olhos postos na noite,
chegamos a acreditar que existe.


                                                                                               Luís Filipe Parrado

A Dupla Chama



O Amante ama o corpo como se fosse a alma e a alma como se fosse o corpo. O amor mistura a terra com o céu, é a grande subversão.

Octavio Paz - A Dupla Chama: Amor e Erotismo, São Paulo, Editora Siciliano, 1993.


Poema como se fosse o quinto


quando chove e os relâmpagos se esforçam num arrepio de
angústia, os homens todos são carroças a puxar lágrimas
muito tristes e chuvas muito frias.

nesse tempo diz-se que a terra se vira dentro dos edifícios
e a emoção se repara na imortalidade do silêncio. aí, somos
todos os outros que já foram nossos sem nunca
renunciarem

e o sábio calar-se-à

e o monge habituar-se-à

e qualquer pessoa muito ruidosa se entediará de fadiga.


                                                        Maria Quintans, O Silêncio, ed. hariemuj - 2013




sábado, 20 de julho de 2013

Uma Conspiração de Lábios


                                                                            A uma poeta argentina

contra a noite digo a palavra que cairá sobre
os homens de pulsos envolvidos em sangue
isto é o coração onde lhes chego pela garganta
arranco-as da terra à força bruta de braços

contra o medo chamo a mim a escuridão
para induzir suave uma ideia de céu contra 
o próprio céu agora que a figuração da noite
não cabe na forma de a dizermos rapidamente

virão em mim dançando a erudição do seu uso
com plumas e riquezas à boca da água, fugiremos
Reis da cruel justeza do silêncio tão maior
nos aterros que nos coiceiam em rituais de manada 

iremos assim cheios só de viver meditando palácios 
no momento de cair

Raquel Nobre Guerra, in Meditações sobre o Fim, Os últimos Poemas. Lisboa: Hariemuj.



As Coisas Conhecidas



Não são coisas se lhes soubermos os limites,
Conhecermos as formas, o volume, a superfície.
As coisas conhecidas são pedras e poemas. E o teu nome
sempre infiltrado nos versos.
Colecciono-as: pedras. Clecciono-os: poemas.
Tenho por hábito roubá-los. E, todavia, possuo apenas uma
coisa conhecida. Colhida numa praia de vidro
fundido pelo ar quente do Adriático, a pedra polida
é o melhor poema (o nosso melhor poema).
Guardo-a no bolso, onde meto a mão;
guardo-a na mão, onde se encaixa,
fria, macia, perfeita, uma pedra cinzenta,
a única coisa conhecida.
Leio-a. Tem o teu nome.
Largo-a
ao sentir o peso que lhe falta.

Como as andorinhas anunciam a Primavera,
os papeis velhos têm outros mistérios a anunciar:
o teu nome e a impossibilidade de o roubar.
Não é deste tempo. Não pertence a ninguém.

                                                   
Inês Fonseca Santos, in As Coisas. Lisboa: Editora Abysmo, 2012.



Marginalia em Camões


Morangos à tarde frescos
escolho burros bonitos
o sol grandão em cabelo
tu vais ver eu transformo

Eu transformo o sítio de
quando te deitas na relva
e a poesia nos poemas
é um crescimento a banhos

O sol oportunidade no mar
é tão quente e apertado
quando te deitas na relva

contra o livro
lateral a inteligência
a parte de fora

Hugo Milhanas Machado, in Cintilações da Sombra - Antologia Poética. Coordenação de Victor Oliveira Mateus
Editora Labirinto
Núcleo de Artes e Letras de Fafe

quarta-feira, 17 de julho de 2013


SENTIR É DOIS.



                                                                                                                           Rainer Maria Rilke.

segunda-feira, 15 de julho de 2013



O Orgulho é desprovido de alma; e, no entanto, em tudo a imita.


Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

O Guardador de Rebanhos

I.

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural —
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro,



A produção de um indivíduo isolado fora da sociedade é tão absurda como o desenvolvimento de uma língua sem indivíduos que vivam juntos e falem entre eles.



Ludwig Wittgenstein.