segunda-feira, 29 de julho de 2013

K. Canguru

                                                                    
Vives no desejo de quem te quer: A casa mais ampla: Ainda em expansão.

I.
O meu amigo trabalhava na Google, andava num carro a filmar a Austrália. O carro da Google levantava o pó vermelho do deserto e a câmara filmava as nuvens que se formavam; às vezes ia ter com Canguru e lia-lhe “O Principezinho”.

II.
 O meu amigo foi apanhado pela policia do deserto a conduzir com álcool no carro da empresa. Prenderam o meu amigo numa prisão do deserto. Depois soltaram o meu amigo e ele foi para o aeroporto. Entrou num avião - O avião foi para a América.
Quando estavam por cima da estátua da Liberdade as hospedeiras disseram para apertarem os cintos e os meninos olharam pela janela para ver a América. Uma rapper feminista de Manhattan despertava e olhava para o avião da janela. Regou as flores enquanto tomava um Nescafé na chávena colorida. Escreveu num guardanapo que “Os sonhos americanos são os mais húmidos”.

III.
Canguru sentia-se sozinho no meio da Austrália porque o seu amigo tinha-se ido embora.
Canguru tinha só uma pata porque tinha pisado uma mina com a outra. O meu amigo ligou-lhe a pata doente mas três dias depois o veterinário do deserto cortou-lhe a pata doente. O meu amigo comprou uma pantufa cor-de-rosa e calçou a pantufa ao Canguru. Meteu-lhe algodão dentro das orelhas peludas para não ouvir as explosões. Comprou uns phones cor-de-rosa e felpudos e meteu-os nas orelhas do Canguru, ligou-os a um mp3 e meteu o mp3 na bolsa do Canguru. Meteu também na bolsa do Canguru uma carta de amor de uma antiga namorada de Melbourne, um santinho de Amsterdão, um mapa da Austrália bem dobrado e um girassol que ficava metade de fora. Meteu também um trevo de quatro folhas dentro do “Principezinho” e meteu também “O “Principezinho” dentro do bolso do Canguru – Toma, isto é tudo o que tenho, se te sentires sozinho e com medo, vai a uma estação de serviço e pede a um gasolineiro que te tire do bolso o livro e te leia até não teres mais medo, os gasolineiros quase não têm trabalho, só passa um camião de duas em duas horas, entretanto os gasolineiros dormem e esperam os Cangurus. Lembra-te que a noite já não existe, já sabes que às vezes o céu fica um bocado escuro, acontece todos os dias quando o sol se põe mas não é noite – Disse ao Canguru e foi trabalhar para a  ONU. O Canguru saltava com a pantufa e dançava a música que lhe entrava nos phones cor-de-rosa.
. Canguru tinha medo da noite por isso dormia de dia e vivia de dia. Saltava com a pantufa cor-de-rosa todo o dia e não dormia porque à noite não havia noite. Os faróis dos camiões iluminavam o Canguru.
Às vezes sonhava que saltava por cima dos arrozais do Vietname e por cima dos campos de algodão da Carolina do Norte, pelos campos de papoilas do Afeganistão, ao lado dos moinhos de La Mancha, por cima dos charcos que rodeiam o Nilo. Uma noite sonhou que saltava em Angola e pisou uma mina.
O mapa da Austrália estava dentro da bolsa de Canguru e parecia uma partitura em braille. Os meninos cegos do Mississípi liam a partitura em Braille e a música sabia às virilhas das irlandesas, sabia a whisky, a casaco de pele de búfala e gasolina. Canguru saltou na pata única até ao posto de gasolina mais perto “Dirty Old Town” estava em repetição – os phones cor-de-rosa, o gasolineiro a dormir. Não passava nenhum camião. O sol estava muito forte, uma mancha de gasolina fazia um pequeno arco-íris no asfalto sobreaquecido. Uma borboleta monarca com as asas às riscas negras e vermelhas dançava por cima hipnotizada por este efeito ótico. Só tinha mais dois dias de vida … Podia perdê-lo com a poesia. Não havia mãos humanas e despertas para tirar o livro da bolsa de Canguru, nem respirações seguras e pulsos fortes que o segurassem, bocas que lessem o “Principezinho” para matar as saudades ao Canguru.

IV.
 Enquanto isso o meu amigo limpava os corredores da ONU e os escritórios da ONU e os minibares da ONU, passava muita lixivia no chão e limpava o chão com uma esfregona. Com muita lixivia, a ONU cheirava à campa da Rainha de Inglaterra. Alguém contava ao meu amigo que as alucinações olfativas dos esquizofrénicos e doentes com psicoses tóxicas são as mais perigosas. O meu amigo lembrou-se que tinha deixado uma pastilha de uma droga sintética dentro da bolsa do Canguru. Pousou a esfregona dentro do balde, entrou num dos gabinetes de um assistente do Secretário-Geral. No chão viu um papel perdido. Pegou nele – Um documento que legitimava a invasão de um país da Ásia Menor. Leu-o e pensou no Canguru, que música é que ele estava a ouvir? Gravou mais de cem músicas no MP3 que lhe deixou na bolsa em repetição: Bossa Nova, Cumbia Andina, Reggaeton, Congotronics, forró, cantares búlgaros, música de intervenção e os cem melhores êxitos do Rock. Ou estaria a ouvir as confissões de um gasolineiro alcoólico? Leu no documento as assinaturas de todos os membros do Conselho Geral. Pôs o documento no bolso. E foi para o Aeroporto. O avião levou-o até Sidney e uma camioneta levou-o até ao Canguru. Abraçou-o e meteu dentro da bolsa dele o documento. Os secretários do Secretário-Geral da ONU procuravam o documento em todos os gabinetes da ONU. A guerra não podia começar enquanto não fosse descoberto documento e as noites não caiam. Foram contratados outros secretários para procurarem o documento. A guerra não podia começar enquanto não aparecesse o documento. Tinha de ser redigido outro e tinha de ser assinado outra vez pelos representantes dos países que entretanto já tinham regressado aos seus países. Assim a solução era marcar outra conferência geral – o que ia demorar pelo menos três meses e teria de se admitir o erro.
 Enquanto isso o meu amigo abraçava o Canguru. Beijou-o… no calor do beijo meteu-lhe a mão na bolsa … o fundo da bolsa, húmida e quente, parecia não ter fundo. Ali o meu amigo afogou a mão, perdeu a mão no seu fundo – como um abraço sem braços – pensou enquanto os helicópteros desciam. Os hélices rápidos rodearam os dois amigos.


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Nuno Brito

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