domingo, 6 de abril de 2014

Eugénio de Andrade

MATÉRIA SOLAR

5.
Claro que os desejas, esses corpos
onde o tempo não enterrou ainda
os cornos fundos – não é o desejo
o amigo mais íntimo do sol?
Que os desejas, como se cada um
deles fosse o último, último corpo
que o teu corpo tivesse para amar.

13.
Aqui me tens, conivente com o sol
neste incêndio do corpo até ao fim:
as mãos tão ávidas no seu voo,
a boca que se esquece no teu peito
de envelhecer e sabe ainda recusar.

18.
Eu amei esses lugares
onde o sol
secretamente se deixava acariciar.

Onde passaram lábios,
Onde as mãos correram inocentes,
O silêncio queima.

Amei como quem rompe a pedra,
ou se perde
na vagarosa floração do ar.

25.
Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra morre.


28.
Dormíamos nus
 no interior dos frutos.

É o que temos: sono
e a estiagem subitamente
até ao fim.

Amargos.

Pela humidade descia-se
às fontes – lembro-me.
Dos lábios.

46.
Olha. Já nem sei de meus dedos
roídos de desejo, tocava-te a camisa,
desapertava um botão,
adivinhava-te o peito cor de trigo,
de pombo bravo, dizia eu,
o verão quase no fim,
o vento nos pinheiros, a chuva
pressentia-se nos flancos,
a noite, não tardaria a noite,
eu amava o amor, essa lepra.

Eugénio de Andrade – Matéria Solar (1980).

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