CRÓNICA DECORATIVA
I
A circunstância humana
de eu ter amigos fez com que ontem me acontecesse vir a conhecer o Dr. Boro,
professor da Universidade de Tóquio. Surpreendeu-me a realidade quase evidente
da sua presença. Nunca supus que um professor da Universidade de Tóquio fosse
uma criatura, ou sequer cousa, real.
O Dr. Boro — sinto que
me custa doutorá-lo — pareceu-me escandalosamente humano e parecido com gente.
Vibrou um golpe, que me esforço por desviar de decisivo, nas minhas ideias
sobre o que é o Japão. Trajava à europeia, e, como qualquer mero professor
existente da Universidade de Lisboa, tinha o casaco por escovar. Ainda assim,
por delicadeza, dei-me por ciente, durante duas horas, da sua presença próxima.
Preciso explicar que as
minhas ideias do Japão, da sua flora e da fauna, dos seus habitantes humanos e
das várias modalidades de vida que lhes são próprias, derivam de um estudo
demorado de vários bules e chávenas. Eu por isso sempre julguei que um japonês
ou uma japonesa tivesse apenas duas dimensões- e essa delicadeza para com o
espaço deu-me uma afeição doentia por aquele país económico de realidade. O
professor Boro é sólido, tem sombra — várias vezes fiz com que o meu olhar o
verificasse — e além de falar e falar inglês, coloca ideias e soluções
compreensíveis dentro das suas palavras. A circunstância de que as suas ideias
não comportam nem novidade nem relevo apenas o aproxima dos professores
europeus, pavorosamente europeus, que conheço.
Além disto o professor
Boro tem movimento, desloca-se, não sei como, de um lado para o outro, o que,
feito perante quem sempre teve o Japão por uma nação de quadro, parada e apenas
real sobre transparência de louça, é requintadamente ordinário e desiludidor.
Falávamos de política
internacional, da guerra europeia, e fizemos várias incursões pelos vários
fenómenos literários característicos da nossa época. A ignorância que o
professor Boro tinha de futurismo foi a única benzina para a nódoa da sua
realidade moderna. Mas há algum professor de alguma Universidade da Europa que
siga de perto os movimentos da arte contemporânea?
Dados os factos que
venho explicando, compreende-se que eu fosse avaro de o interrogar sobre o
Japão. Para quê? Ele era capaz de atirar para dentro da minha ignorância uma
quantidade de cousas falsas. Quem sabe se ele se atreveria a insinuar pela
conversa fora, como cousa normalmente acreditável, que no Japão há problemas
económicos, dificuldades de vida para várias pessoas, cidades com lojas reais,
campos com colheitas como as nossas, exércitos realmente parecidos com os da
Europa e com execráveis aperfeiçoamentos científicos para guerras em verdade
contemporâneas? Daqui ele não hesitaria talvez em me afirmar — com que cinismo
nem eu meço — que no Japão os homens têm relações sexuais com as mulheres, que
nascem crianças, que a gente de lá, em vez de estar sempre vestida como as
figuras da louça japonesa, despe-se e veste-se como se fosse europeia. Por isso
não tratámos do Japão. Perguntei ao professor se ele tinha tido uma boa viagem,
e ele caiu em dizer-me que não — como se um estudioso como eu da porcelana
nipónica pudesse admitir que há más viagens para os japoneses, que — delicioso
povo! — nem sequer se dá ao trabalho de existir. As chávenas partem-se, não
comportam tormentas. A frase «uma tempestade num copo de água» ou «numa
chávena», como dizem outros, é puramente europeia.
Uma frase houve (casual,
quero crer, no professor Boro) que me magoou mais do que outra.
Falávamos — eu, é claro,
com o desprendimento com que se tratam estes assuntos feéricos — da influência
dos mecanismos sobre a psicologia do operário, quando se sabe — claro está —
que o operário não tem psicologia. E o professor referiu-se aos progressos
industriais do Japão e acrescentou umas palavras, que me esforcei com metade de
êxito para não ouvir, sobre (creio) movimentos operários no Japão e um
fuzilamento (suponho) de não sei que chefe socialista. Eu há tempos — numa
coluna sem dúvida humorística de um diário — vira em um telegrama de Tóquio
constando qualquer cousa nesse tom; mas, além de não crer que de Tóquio se
mandasse telegramas — visto Tóquio não ter mais do que duas dimensões —,
ninguém que como eu tenha estudado a psicologia japonesa através das chávenas e
dos pires admite progressos de qualquer espécie no Japão, indústrias japonesas,
movimentos socialistas e chefes socialistas, ainda por cima fuzilados, como
quaisquer europeus que vivem. Quem como eu conhece bem o Japão — o verdadeiro
Japão, de porcelana e erros de desenho — compreende bem a incompatibilidade
entre o progresso, indústria e socialismo, e a absoluta não existência daquele
país. Socialistas japoneses! uma contradição flagrante, uma frase sem sentido,
como «círculo quadrado»! Se nem o inexistente estivesse livre do socialismo!
Aquelas figuras deliciosas, eternamente sentadas ao pé de casas do tamanho
delas, à beira de lagos absurdos, de um azul impossível, aquém de montanhas
totalmente irreais — essas maravilhosas figuras, com uma perfeita e patriótica
individualidade japonesa, não pertencem decerto ao horroroso mundo onde se progride,
e onde sobre o artista desabam a morbidez do produtivo e a barbárie do
humanitário.
E vem querer tirar-me
estas convicções o professor Boro, da Universidade de Tóquio! Não mas tira. Não
é para ser enganado pela primeira realidade que se me atira aos olhos que eu
tenho gasto minutos distensos na contemplação científica e estéril de bules e
chávenas japonesas. O mais provável, a respeito deste Boro, é que nascesse em
Lisboa e se chame José. Do Japão, ele? Nunca.
Se ao menos achei achei
japonesa a sua cara? Absolutamente nada. Basta dizer que era real e existiu ali
diante de mim, duas dolorosas horas, em plena ocupação inestética de todas as
dimensões aproveitáveis (felizmente só três) do espaço autêntico. A sua cara
parecia-se, é certo, com certas fotografias de «japoneses» que as ilustrações
trouxeram há anos, e de vez em quando reincidindo trazem; mas toda a gente que
sabe o que é o Japão por nunca lá ter ido, sabe de cor que aquilo não são
japoneses. E, de mais a mais, essas ilustrações eram principalmente de
generais, almirantes, e operações guerreiras. Ora é absolutamente impossível
que no Japão haja generais, almirantes e guerra. Como, de resto, fotografar o
Japão e os japoneses? A primeira cousa real que há no Japão é o facto de ele
estar sempre longe de nós, estejamos nós onde estivermos. Não se pode lá ir,
nem eles podem vir até nós. Concedo, se me forçarem a isso, que existam um
Tóquio e um Iocoama. Mas isso não é no Japão, é apenas no Extremo Oriente.
O resto da minha vida,
doravante, será escrupulosamente dedicado a esquecer o professor Boro e que ele
— impronunciável absurdose sentou na cadeira que está agora, na realidade de
madeira, defronte de mim. Considero doentio esse facto, alucinatório talvez, e
entrego-me com assiduidade a não me lembrar dele mais. Um japonês verdadeiro
aqui, a falar comigo, a dizer-me cousas que nem mesmo eram falsas ou
contraditórias! Não. Ele chama-se José e é de Lisboa. Falo simbolicamente, é
claro. Porque ele pode chamar-se Macwhisky e ser de Inverness. O que ele não
era decerto era japonês, real, e possível visitante de Lisboa. Isso nunca.
Desse modo não havia ciência, se o primeiro ocasional nos viesse negar o que os
nossos estudos assíduos nos fizeram ver.
Professor Boro, da
Universidade de Tóquio? De Tóquio? Universidade de Tóquio? Nada disso existe.
Isso é uma ilusão. Os inferiores e cábulas de nós construíram, para se não
desorientarem, um Japão à imagem e semelhança da Europa, desta triste Europa
tão excessivamente real. Sonhadores! Alucinados!
Basta-me olhar para aquela bandeja, pegar
cariciosamente com o olhar naquele serviço de chá. Depois venham falar-me em
Japão existente, em Japão comercial, em Japão guerreiro! Não é para nada que,
através de esforços consecutivos, a nossa época ganhou o duro nome de científica.
Japoneses com vida real, com três dimensões, com uma pátria com paisagens de
cores autênticas! Lérias para entretimento do povo, mas que a quem estudou não
enganam...
1914
Ficção e Teatro. Fernando
Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins:
Europa-América, 1986
- 65.
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