sábado, 27 de setembro de 2014

Filipe Teles


Na gare de Lyon ouço música pop
Não sei o que faço aqui com os
guichets preenchidos de perguntas
                                  Em que lugar?
              Qual o cais para Grenoble?
E espero, como tantas vezes.
Jornais, revistas, sanduíches
Humildes balcões húmidos repletos de publicidade desinteressante
Viagens circulares sem destino, de quem espera
sem correr, sem vontade.
A mulher de verde com óculos escuros
O homem de fato a tentar esconder o coçado do colarinho
O homem de fato a tentar disfarçar as sapatilhas
O de sapatilhas a tentar arrebatar o porta-moedas da mulher de verde
Os gritos da velha que não sabe do marido que está mais interessado na miúda loura
Coca-cola que aqui se diz côcá
Batatas fritas, frites, frites,
E o cheiro imundo a óleo
E espero com os
miúdos que correm para lá do alcance dos olhos.
Os papéis voam-me
São os aviões na gare de Lyon 
À minha frente, enquanto aguardo o autocarro,
lê triste um livro
- verso foleiro, mas o rosto era esse.
Não percebo o que lê.
Triste porque parece
não que tenha a certeza.
Está na idade de ler livros tristes.
Com as mãos a vibrar lentamente sobre páginas antigas
As palavras sussurrando-lhe ao ouvido
Cenas imaginadas, mais ricas do que o próprio texto
Mais húmidas do que a chuva
Ou o balcão imundo
Como se fazer-lhe mal fosse um primário desejo. 
Apetece sair e dar uma boa caminhada entre os autocarros
Respirar o ar puro, ou o fumo do escape,
Ver luz
Sem a voz repetida do anúncio dos cais de partida.
Apetece mergulhar numa queda de água
Bater a espuma nos ombros
E sorrir um verde imaturo.
Mas sou puxado de novo para a gare.
Para a espera em viagens circulares sem destino, com as folhas a fugirem-me,
sem lugar onde sentar,
apenas aquele com ela de frente
segurando o livro como cálice sagrado
sem fingimento
só lágrimas e vibração religiosa. 
Se falasse talvez eu desistisse de a admirar
talvez tudo fosse muito mais normal e a cheirar a óleo como tudo o resto.
Há dois tipos de poetas, os que trabalham com imagens
e os que produzem as imagens. Os últimos morrem por dentro
e nós morremos pelos olhos.
A única forma de estar verdadeiramente a salvo
é ser cego
Uma cegueira que corre em sentido anti-horário
anti-vida que nos entra pelos olhos.
Ou então fechá-los propositadamente sempre que doam.
Quando a imagem fere
e essa dor se mantém intimamente, como um silvo interminável.
Se um dia penso numa cor, verde ou laranja,
não preciso encontrá-la para sobre ela construir um poema.
Mas se a cor, o verde ou o laranja, vem ter comigo,
então posso cegar-me de dor. 
São quase três horas.
Olho-a uma última vez para deixar a ferida por cicatrizar
embutida nos olhos
por dentro
- pelo menos por uns minutos, enquanto me durar a vontade.
Não a deixo falar, não a quero ouvir,
nem mexer. Deixá-la ali quieta é melhor.
A vida é água fria
com menos sabor do que a imaginação
- pelo menos a minha
de onde consigo domar o destino
e despentear a realidade
até ela gritar de prazer.
Deixo-a girar ritmadamente as páginas
sonhando-a como quero
- sem que fale, nem me olhe.
Melhor assim,
sublimada, despenteada, irreal,
quente. 
Na gare de Lyon não há aviões.
Há livros e lágrimas escondidas.


Filipe Teles, partilhado a partir de Enfermaria 6.

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