sábado, 27 de setembro de 2014

Manuel de Freitas. Benilde ao balcão II


«Dê-me uma menina» - que outra
mais irrecusável maneira
de pedir uma cerveja diminuta?
Pois é, leitor, estamos outra vez
na mais bela praça de Lisboa,
com taberna a condizer.
Benilde, ao balcão, diz que está
com «cara de dores», talvez morra
- diz ela - este ano. O pior
é sempre o sofrimento, ninguém
o duvida, ninguém.

Mas entretanto a morte
entra nesta taberna
vestida de corpo aposentado
- e senta-se devagar, peida-se
devagar, olha-me fixamente,
tanto quanto a miopia lhe permite.
Bebe sôfrega a morte e peida-se
ainda. Não jogamos xadrez,
nem sequer dominó - isto não é
Bergman, é apenas a vida(?),
pouco dada a estéticas.

O amor, talvez o amor, é
lá fora brando, louro e feliz.
Talvez ele, para quem o possa ter
nesta tarde em declínio,
cheio de sol baixo e pombas.
«Estamos perdidos e ninguém nos pode
achar», diz ainda Benilde ao balcão,
mais sucinta, penetrante e pura
do que alguma vez foi ou será
um verso meu ou de outrem.

Razão de silêncio, dirá o leitor.
Eu bendigo a sombra, contemplo-a devagar
no rosto sem estrofes de Benilde ao Balcão.


Manuel de Freitas, Os Infernos Artificiais, Lisboa, Frenesi, 2001.

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