Antes disso havia a sombra
o pai a dormir a sesta
e o rumor do mar ao fundo,
talvez me falseie a imagem,
mas esse azul atlântico
a arder no vento, essa luz
única, a céu aberto
e tudo tão lento
porque o tempo não tinha distracções
nem se deixava comer por rigores
de trabalho ou de vida emprestada.
Nesse tempo eram as casas habitadas
e os sonhos lentos
as sombras da noite,
a confundir-se com os ramos das árvores,
alguns sonhos não se abatem nem morrem
são raízes que se fincam no corpo
cartografias improváveis, secretas,
e, quando galopa o silêncio,
descem até nós, chamam-nos
e arrastam-nos pelos cabelos.
Antes disso era esse azul atlântico
a crescer na tarde.
Maria João Cantinho in "Do Ínfimo". Coisas de Ler Edições, 2016, p 33.
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