As espessas solas das tuas botas oprimem-se contra a borda do
C-130, minutos antes de tocares a brita do conhecido caminho recozido por sóis
e salitres entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio. Produz-se um
estremicimento sob os teus pés, no flanco dolorido da terra. O couro do cano
flecte com a mesma impassibilidade com que cobria as carnes de uma Holstein em
Denver, sem o temor que o retesou enquanto o comboio serpenteava pelos trigais
do Midwest, sem a premonição nem os espasmos ante os matadouros e as fábricas
de cortumes de Chicago, muito perto da oficina onde as mãos de uma rapariga
loira, que talvez se chamasse Mary ou Katy, iam semeando a pele de pontos e
impressões digitais. Uma rapariga sardenta do Kentucky que bebe Sprite, termina a High School
nas aulas da noite, lê fotonovelas e sonha com Robert Redford enquanto faz amor
com um namorado tão alto como tu, e tão magro, que lhe serviriam as tuas calças
fiadas em Atlanta com o áspero algodão do Alabama. As tuas calças, que agora se
camuflam entre as ervas-da-guiné; a sua ondulação ao vento, onde se escondem
presságios de arrozais em Binh-Dinh durante o ano Suu, no ciclo de Tet. Sob o
colete a camisa começa a humedecer-se, entre os trópicos de Câncer e de
Capricórnio. O celofane enruga-se mas ainda te protegem os Marlboros (US
Tax Selected fine Tobacco Phillip Morris. Richmond) e corre perigo a
fotografia de Catherine brincando aos jardins zoológicos com o ursinho de
peluche Mike, no pátio de Fresno, Califórnia. A ordem é pentear o capim em
formação cerrada até ao alto das colinas. E vais cumprindo com a precisão de
quem ajusta os circuitos de uma Texas
Instruments. Se assim não fosse,
poderias pertencer à Army, mas nunca à Eighty Second Division – acção rápida,
golpes eficazes e limpos em qualquer parte do planeta. Não te teriam transferido para Fort Bragg,
North Carolina, nem Catherine poderia passar as suas férias de verão no
Bungallow novo de Long Beach, onde a criança que foste apedrejou os castelos de
areia que fazia Raymond, o teu raquítico primo professor de Física Molecular e
pacifista em Berkeley. E os castelos desmoronavam-se como há momentos o
edifício mais compacto de Saint George’s. Quando voaram sobre ti os Intruders
da Navy, puseste o palito de carvalho que te acompanha sempre desde Da Nang
entre os dentes. Por muito longe que ocorram, as explosões afectam as membranas
do tímpano, e sorris ao pensar num oficial da Army surdo. Entre a onda e o som,
pudeste imaginar o edifício mais compacto
de Saint George´s ligado aos olhos celestes de Ronald, o rapaz de
Birmingham, através do colimador. E depois
nem sequer imaginaste. A erva abre-se por vezes em pedregais, fecha-se
em cerros de arbustos recrestados e o ursinho Mike converte-se numa
mancha que já não pode brincar aos jardins zoológicos com uma menina decapitada
pelo suor.
Luis Manuel García – O vendedor de
borboletas, in A Ilha Contada: Antologia de Contos Cubanos. Lisboa:
Caminho, 1996.
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