segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O Vendedor de Borboletas - Luis Manuel García


As espessas solas das tuas botas oprimem-se contra a borda do C-130, minutos antes de tocares a brita do conhecido caminho recozido por sóis e salitres entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio. Produz-se um estremicimento sob os teus pés, no flanco dolorido da terra. O couro do cano flecte com a mesma impassibilidade com que cobria as carnes de uma Holstein em Denver, sem o temor que o retesou enquanto o comboio serpenteava pelos trigais do Midwest, sem a premonição nem os espasmos ante os matadouros e as fábricas de cortumes de Chicago, muito perto da oficina onde as mãos de uma rapariga loira, que talvez se chamasse Mary ou Katy, iam semeando a pele de pontos e impressões digitais. Uma rapariga sardenta do Kentucky que bebe Sprite, termina a High School nas aulas da noite, lê fotonovelas e sonha com Robert Redford enquanto faz amor com um namorado tão alto como tu, e tão magro, que lhe serviriam as tuas calças fiadas em Atlanta com o áspero algodão do Alabama. As tuas calças, que agora se camuflam entre as ervas-da-guiné; a sua ondulação ao vento, onde se escondem presságios de arrozais em Binh-Dinh durante o ano Suu, no ciclo de Tet. Sob o colete a camisa começa a humedecer-se, entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio. O celofane enruga-se mas ainda te protegem os Marlboros (US  Tax Selected fine Tobacco Phillip Morris. Richmond) e corre perigo a fotografia de Catherine brincando aos jardins zoológicos com o ursinho de peluche Mike, no pátio de Fresno, Califórnia. A ordem é pentear o capim em formação cerrada até ao alto das colinas. E vais cumprindo com a precisão de quem ajusta os circuitos de uma Texas Instruments. Se assim não fosse, poderias pertencer à Army, mas nunca à Eighty Second Division – acção rápida, golpes eficazes e limpos em qualquer parte do planeta.  Não te teriam transferido para Fort Bragg, North Carolina, nem Catherine poderia passar as suas férias de verão no Bungallow novo de Long Beach, onde a criança que foste apedrejou os castelos de areia que fazia Raymond, o teu raquítico primo professor de Física Molecular e pacifista em Berkeley. E os castelos desmoronavam-se como há momentos o edifício mais compacto de Saint George’s. Quando voaram sobre ti os Intruders da Navy, puseste o palito de carvalho que te acompanha sempre desde Da Nang entre os dentes. Por muito longe que ocorram, as explosões afectam as membranas do tímpano, e sorris ao pensar num oficial da Army surdo. Entre a onda e o som, pudeste imaginar o edifício mais compacto  de Saint George´s ligado aos olhos celestes de Ronald, o rapaz de Birmingham, através do colimador. E depois  nem sequer imaginaste. A erva abre-se por vezes em pedregais, fecha-se em cerros de arbustos recrestados e o ursinho Mike converte-se numa mancha que já não pode brincar aos jardins zoológicos com uma menina decapitada pelo suor.

Luis Manuel García – O vendedor de borboletas, in A Ilha Contada: Antologia de Contos Cubanos. Lisboa: Caminho, 1996.

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