Nos teus olhos
altamente perigosos
vigora ainda o
mais rigoroso amor
a luz dos ombros
pura e a sombra
duma angústia já
purificada
Não tu não
podias ficar presa comigo
à roda em que
apodreço
apodrecemos
a esta pata
ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo
pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar
nesta cadeira
onde passo o dia
burocrático
o dia-a-dia da
miséria
que sobe aos
olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal
soletrado
à estupidez ao
desespero sem boca
ao medo
perfilado
à alegria
sonâmbula à vírgula maníaca
do modo
funcionário de viver
Não podias ficar
nesta casa comigo
em trânsito
mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que
não vem da promessa
puríssima da
madrugada
mas da miséria
de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar
presa comigo
à pequena dor
que cada um de nós
traz docemente
pela mão
a esta pequena
dor à portuguesa
tão mansa quase
vegetal
Mas tu não
mereces esta cidade não mereces
esta roda de
náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena
morte
e o seu
minucioso e porco ritual
esta nossa razão
absurda de ser
Não tu és da
cidade aventureira
da cidade onde o
amor encontra as suas ruas
e o cemitério
ardente
da sua morte
tu és da cidade
onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou
vives não de asfixia
mas às mãos de
uma aventura de um comércio puro
sem a moeda
falsa do bem e do mal
Nesta curva tão
terna e lancinante
que vai ser que
já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um
adolescente
tropeço de
ternura
por ti
Alexandre O´Neill,
No Reino da Dinamarca (1958).
Poesias Completas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012.
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