Depois
de ler a carta, Fradique Mendes abriu os braços, num gesto desolado e risonho,
implorando a misericórdia de Vidigal. Tratava-se como sempre, da alfândega,
fonte perene das suas amarguras! Agora tinha lá encalhado um caixote, contendo
uma múmia egípcia…
-
Uma múmia? ...
Sim,
perfeitamente, uma múmia histórica, o corpo verídico e venerável de Pentaour,
escriba ritual do templo de Amnon em Tebas, o cronista de Ramsés II. Mandara-o
vir de Paris para dar a uma senhora da Legação de Inglaterra, Lady Ross, sua
amiga e Atenas, que em plena frescura e plena ventura, colecionava antiguidades
funerárias do Egipto e da Assíria… Mas, apesar de esforços sagazes, não
conseguia arrancar o defunto letrado aos armazéns da alfândega – que ele
enchera de confusão e de horror. Logo na primeira tarde quando Pentaour
desembarcara, enfaixado dentro do seu caixão, a Alfândega, aterrada, aviou a
polícia. Depois calmadas as desconfianças de um crime, surgira uma insuperável
dificuldade: que artigo de pauta se poderia aplicar ao cadáver de um hierogramata
do tempo de Ramsés? Ele, Fradique, sugerira o artigo que taxa o arenque fumado.
Realmente, no fundo, o que é um arenque defumado senão a múmia, sem ligaduras e
sem inscrições, de um arenque que viveu? Ter sido peixe ou escriba nada
importava para os efeitos fiscais. O que a Alfândega via diante de si era o
corpo de uma criatura , outrora palpitante, hoje secada ao fumeiro. Se ela em
vida nadava num cardume nas ondas do mar do Norte, ou se, nas margens do Nilo,
há quatro mil anos, arrolava as reses de Amnon e comentava os «capítulos de fim
de dia» - não era certamente da conta dos Poderes Públicos. Isto parecia-lhe
lógico. Todavia as autoridades da Alfândega continuavam a hesitar, coçando o
queixo, diante do cofre sarapintado que encerrava tanto saber e tanta piedade!
E agora naquela carta os amigos Pintos Bastos aconselhavam, como mais nacional
e mais rápido, que se arrancasse um «empenho» do Ministério da Fazenda, para
fazer sair sem direitos o corpo augusto do escriba de Ramsés. Ora este empenho,
quem melhor para o alcançar que Marcos – esteio da Regeneração e seu cronista
musical?
QUEIRÓS,
Eça de (1999), A Correspondência de
Fradique Mendes, Lisboa, Livros do Brasil.
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