Há uma rotação do teu corpo
ou de uma parte dele que está pelo
todo
e fora dos eixos do mundo.
Rodas a partir da cintura, estendes
um braço,
há um músculo que se ilumina, uma
onda
vertical em que tu própria te
subisses;
então uma perna flecte-se, e o
outro pé fica em ponta
oblíquo sobre o mundo que nesse
instante
se suspende.
Há uma rotação do teu corpo –
Andas pela casa: és um leve rumor
sob o silêncio
um rumor que alumia a sombra
silenciosa;
na sala, o homem quase surdo quase
cego
ouve-te, julga reconhecer-te: vens
aí.
Estás aqui. O intervalo de tempo já
começou:
há uma rotação no teu corpo
que me exclui do mundo e
entretanto é feita para mim;
atinge-me
à velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
sou tomado pelo vento do fogo que
me consome
até ser apenas a última brasa:
pequenas ravinas de luz
o incêndio restante sob a exausta
crosta da terra
Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol disparando no
céu sobre as casas
ou como o anúncio luminoso do
prédio em frente
que varre intermitente a
obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?
É como se soubesses
que voltará, sim, e que não, não
poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu
talvez
quem já lá não está. Quando
é quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo
voltar
à possibilidade dessa forma?
Estes corpos que somos são
estranhas
invenções delirantes: tu não tens
rodas e contudo
rodaste como se uma hélice te
elevasse
só de um lado, te aspirasse até um
outro estrato
aéreo, ou como se tu própria, folha
aérea,
folheasses o ar e o mundo
estremecesse
fora dos eixos.
Isso imprime-se nas areias do
cérebro.
Depois, viesse um vento
e desfaria as dunas desse mapa:
a impressão ondula, muda de lugar,
mas
resiste. É uma fotografia desfocada
uma tatuagem a outra sobreposta
uma cicatriz que esqueceu a ferida.
Interrompe-se aqui e ali
deixa de ser uma linha fina, um
risco
no mundo, para ser uma corda que se
entrança
e entrança o mundo.
Há qualquer coisa de movente fixo:
por mais que o tentes, o programa
não deixa
que se apague toda e para sempre.
Desligas a máquina, mas o sulco
permanece
no écran. Escreves-lhe em cima:
não desaparece, mas troca
automática
mente algumas letras;
Encharcas-te em álcool, tabaco e
comprimidos
mas a coisa insiste movida pelo
fluxo
e refluxo das imagens, das águas,
das areias, das sombras.
Há, houve uma rotação do teu corpo
e há qualquer coisa de irreparável
que me fizeste quando rodaste no
mundo –
o quase homem aposta tudo em que
voltará.
Joga tudo em que o mundo regressará
a essa forma de uma onda suspensa
na música
a essa rotação fora dos eixos.
Porque é que dizes então
«irreparável»?
Irreparável aponta para
onde?
Irreparável é o mesmo
que antiquíssima
e não idêntica?
A cicatriz é irreparável porque a
ferida é perpétua,
esquecida e perpetua?
Tocas-lhe a milímetros de
distância,
como quem não quer
a coisa,
e tu devias dar e não dar por isso.
Dir-se-ia que o ar se moveu, que
uma coluna
do tempo se deslocou, dançou como a
luz por entre nuvens
na parede verde de um canavial.
Há uma rotação irreparável do teu
corpo
irreparável quer dizer
que já não a podes parar
irreparável é alumbrada
a alegria
o ar fugindo todo o mar subindo até
ocupar
todo o campo do céu e
contudo
pudesses respirar o ar
irrespirável.
Contra todas as evidências em
contrário, a alegria
Manuel Gusmão, Teatros do
Tempo, Lisboa, Editorial Caminho, 2001.
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