quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Manuel Gusmão: A Velocidade da Luz

Há uma rotação do teu corpo
ou de uma parte dele que está pelo todo
e fora dos eixos do mundo.
Rodas a partir da cintura, estendes um braço,
há um músculo que se ilumina, uma onda
vertical em que tu própria te subisses;
então uma perna flecte-se, e o outro pé fica em ponta
oblíquo sobre o mundo que nesse instante
se suspende.

Há uma rotação do teu corpo –
Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio
um rumor que alumia a sombra silenciosa;
na sala, o homem quase surdo quase cego
ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.

Estás aqui. O intervalo de tempo já começou:
há uma rotação no teu corpo
que me exclui do mundo e
entretanto é feita para mim; atinge-me
à velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
sou tomado pelo vento do fogo que me consome
até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz
o incêndio restante sob a exausta crosta da terra

Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas
ou como o anúncio luminoso do prédio em frente
que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?

É como se soubesses
que voltará, sim, e que não, não poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu talvez
quem já lá não está. Quando
é quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar
à possibilidade dessa forma?


Estes corpos que somos são estranhas
invenções delirantes: tu não tens rodas e contudo
rodaste como se uma hélice te elevasse
só de um lado, te aspirasse até um outro estrato
aéreo, ou como se tu própria, folha aérea,
folheasses o ar e o mundo estremecesse
fora dos eixos.

Isso imprime-se nas areias do cérebro.

Depois, viesse um vento
e desfaria as dunas desse mapa:
a impressão ondula, muda de lugar, mas
resiste. É uma fotografia desfocada
uma tatuagem a outra sobreposta
uma cicatriz que esqueceu a ferida.


Interrompe-se aqui e ali
deixa de ser uma linha fina, um risco
no mundo, para ser uma corda que se entrança
e entrança o mundo.
Há qualquer coisa de movente fixo:
por mais que o tentes, o programa não deixa
que se apague toda e para sempre.
Desligas a máquina, mas o sulco permanece
no écran. Escreves-lhe em cima:
não desaparece, mas troca automática
mente algumas letras;
Encharcas-te em álcool, tabaco e comprimidos
mas a coisa insiste movida pelo fluxo
e refluxo das imagens, das águas, das areias, das sombras.


Há, houve uma rotação do teu corpo
e há qualquer coisa de irreparável
que me fizeste quando rodaste no mundo –
o quase homem aposta tudo em que voltará.
Joga tudo em que o mundo regressará
a essa forma de uma onda suspensa na música
a essa rotação fora dos eixos.

Porque é que dizes então «irreparável»?
Irreparável aponta para onde?

Irreparável é o mesmo que antiquíssima
e não idêntica?
A cicatriz é irreparável porque a ferida é perpétua,
esquecida e perpetua?
Tocas-lhe a milímetros de distância,
como quem não quer
a coisa,
e tu devias dar e não dar por isso.
Dir-se-ia que o ar se moveu, que uma coluna
do tempo se deslocou, dançou como a luz por entre nuvens
na parede verde de um canavial.


Há uma rotação irreparável do teu corpo
irreparável quer dizer que já não a podes parar
irreparável é alumbrada a alegria
o ar fugindo todo o mar subindo até ocupar
todo o campo do céu e
contudo
pudesses respirar o ar irrespirável.
Contra todas as evidências em contrário, a alegria


Manuel Gusmão, Teatros do Tempo, Lisboa, Editorial Caminho, 2001.

Sem comentários:

Enviar um comentário