sábado, 21 de junho de 2014

Miguel Cardoso. Cesura


é que um dia não nos salva
e não traz nunca um outro inteiro atrás

quando muito um início imperfeito
um inverso nem sequer menos desfeito

será cedo e será tarde
o canto a começar pela ponta
mais lascada

arrancando-a

aos sons da rádio
que insiste em nos lembrar o calendário
e transcreve para sonatas as cotações melancólicas da bolsa

será cedo e será tarde
quando um verso arranca

entre os destroços

e o verso
trava a fundo a meio
e o som derrapa

e o sentido aterra umas centenas de metros depois
num domingo à tarde estamos nós
a jogar às cartas
de aviso de despejo

eis a questão a ser testada neste nosso laboratório
a de abrir
o fechado
e torcer o aberto
pano das horas

e as costuras
do tempo não serão todas desfeitas
nem os nós da matéria espalhados em rede solta

o mais certo é os corpos não serem leves
não se verem
inteiramente livres de gravidade

mesmo Maio é Maio e não é Maio
como aquela polaroid presa também ela pela ponta
por uma mola
à memória ao arame ao ar

ali a revirar-se na varanda

Não nos convencem contudo que os telhados
e a inclinação das telhas nos telhados
e as antenas que restam nos telhados
e as telhas e antenas soltas nesses mesmos telhados
e todos os outros telhados
não virão a dar jeito nos episódios seguintes

e não só isso

haverá na vida dividida em horas
pedaços mal digeridos de uma outra

e certamente

para a sensibilidade das gengivas
e para o desalinho dos dentes permanentes
para a ideia de que isto se resolve com o tempo
e para os gritos de Electra a entrar no metro
para a caca acumulada nos beirais
e para o gesto de picar o ponto
para o casaco que foi ao fim deste tempo para o prego
e para a rosa que floriu no inverno bravo
para a eficiência bruta do travão de mão
e para os rasgões irreversíveis nos sacos de plástico baratos
para os despedimentos em massa à segunda de manhã
e para a troca de pé de apoio antes do click da câmara
para os produtos de toilette descontinuados
e para as escadas de serviço dos hotéis de luxo
para as lendas sobre a ascenção da classe média
e para as caves onde foi morrer gente
para os alicates com que se corta a luz
e para os gritos quando ela volta
para as dores e doçura da auto-ajuda
e para os canos a roncar por dentro das paredes
para os cinzeiros cheios de restos de cascas de frutos
e para o azul dos anúncios de férias low cost
para o passo lento de quem leva as mães pela mão ao médico
e para as histórias de sucesso de produtores de cogumelos de
amarante
para o vidro espalhado no chão das lojas fechadas da baixa
e para os panos de cozinha já muito desfiados
para o dom duvidoso da música para distrair da sede
e para a obsessão mal focada das câmaras de vigilância
para o ferro velho e para o figo verde
para o maldito heraclito e para o fígado já esquisito
para a bateria gasta e para a sombra das acácias
para os esqueletos cobertos de papelitos
onde se anotam os avanços da ciência económica

e até para estes toscos abre-latas com que tento abrir a fruta

haverá certamente para isso
e para os dias
e para os fotogramas riscados
da nossa graça interrompida

outros usos a dar

outros ventos que venham
estoirar estes tufos
de daninhas ardores e desastres

e com uma agulha longa passar por tudo um fio
de fino urro

incluindo a polaroid que voou
onde tinha a minha cara
e algumas árvores a que não subi

É que já não nos lembramos das canções
o que é o menos
nem por isso não cantaremos

mas esquecemo-nos de como saltar muros o que é pior
até para o cantar

e a construção civil está em nítida recuperação
e fazem-se muros
aumentando a nitidez das partes

isto numa altura em que cai a pique a prática do salto à vara
e em desgraça o passo pequenino mas solto dos sonâmbulos

ainda assim virá talvez o dia
em que de uma frase a outra

alguma coisa acabe
uma outra comece

não que espere iluminações
que redimam a vista para o prédio da frente
nem espero estar despachado tão cedo
deste amontoado de mobílias
de gavetas rombas atulhadas de fios

estes metros e metros de serapilheira muito bem dobradinhos

mas ainda sabemos desamparar-nos

Nós os avessos a esta luz
e sim algo sentimentais
a quem disseram que de nada vale
antever os erros ou a soltura

Nós os que com aspirinas esfareladas
nos bolsos umas quantas gravações
piratas de urros de amores antigos
em trampolins com novelos de atrito
em torno do belo canto da gravilha
e eco e pedaços de lixa e fita-cola

antevemos os erros e a soltura

Nós que consultamos bestiários medievais
e notas de rodapé de comentários
a poemas que falavam de bilans, de vers, de billets
doux, de procès, de romances,
à procura de continuar a revolução
curiosamente a partir da cave e do sótão
que o meio estava perdido

A nós, dos papéis dispersos e canções
interrompidas, das mãos
ao alto, das noites mal dormidas
das fotocópias encardidas,
dos inventários de usos vulgares,
futuros, escorregadios,
de sucessivos delírios de extensos quintais
muito misturados, com arame e bichos,

e às vezes algum sentido prático
no que toca a pôr um pé em frente ao outro
e na presente conjuntura

dons desnecessários

e claro de todo sem idade
para estas coisas, ou velocidade
para deslocar ombros como deve ser,
e já respiramos melhor,
como disse

não nos convencem que os telhados
não virão a dar jeito nos episódios seguintes

Não chegarão para tanto improviso
aquando da falta de ar rente ao solo
e nova distribuição de pares para a dança
nas alturas e tarefas delicadas como acender
fósforos raspando-as na barba mergulhada
no copo na mesa bamba à nossa frente
e rodar a saia rodada e fazer da crosta
do pão duro mapas de estradas secundárias,
e reinventar o telescópio, benzer o início
de mais um insucesso ou de mais uma dentada
num queque com um rodopio
e trocar por exemplo de tiques depressa
e outros sobressaltos

Nós que nos juntámos aos puxadores
de alavancas escondidas
por também não sabermos onde elas estavam
que nos entregamos a paixões dificilmente
por via respiratória, e que de alguma maneira
achamos por isso um encanto ter patas traseiras
para o impulso para dentro do dia
a seguir ser mais brusco

e tivemos livres trânsitos em cabelos alheios desprendidos

que empilhámos os nossos livros
como muro entre a cabeça e os nossos pais

e haveríamos de dar de novo as mãos
às mães e aos pais em queda dos telhados

vindos do serviço de periferia
onde foram ouvir tossir
perto de pontes sobre rios estreitos

Nós que assistimos talvez a três crises do imperialismo
e a pelo menos quatro florescências de um novo cinema
enquanto andávamos acima abaixo nos nossos dias  tão diários

Nós que atiramos a poesia toda de um
contra toda a poesia de todos os outros
para ver como lascavam ao certo os pedaços

Nós que fomos a primeira incursão na ficção 
de país documentaristas à solta em Lisboa
e arredores e com vinte e poucos
começamos com um longo travelling
e mantivemos uma ténue narrativa
que funcionamos assim como uma espécie de lupa
mas éramos na essência uma montagem
de dispersas imagens de arquivo

que depois acreditamos que não se podia viver
sem Rosselini ou seja sem quedas sucessivas
em cidades ocupadas pelo meio do arranhar
do preto e branco e que chorámos
por não conseguirmos viver juntos na precisão
de um plano de Ozu e a quem uma fresta
lá ao fundo cortava os pulsos em cinzento aqui
e leve azul ali, e que fomos definitivamente salvos
por dobradiças lassas várias vezes

que não chegámos a ver as contrapartidas
prometidas para o desbotar dos rostos
debruçados adiados anjos nós caídos
fomos preparando versões alternativas
das agulhas curvas de desembaraçar
o som das horas e imitar o som das vespas

para sermos livres da garganta para cima
uma vez porque também
não nos explicaram ao certo
o que fazer com estes pescoços
pouco flexíveis

Vamos às vezes ao fim da tarde à esplanada

Compramos o jornal à sexta-feira
para passar os dedos pelas estreias
e de novo medirmos em mortos
a intensidade actual dos conflitos

Temos preferências na água com gás
E na adequada temperatura do café

Quando dermos pela vida vamos tremer
como frigoríficos depois de breve hibernação

Damos pela vida

E disparamos em flechas após o fecho dos mercados

e afinal não nos recompusemos da derrota
nem da troca da alegria mal parada
pela medida bem medida

e afinal queremos um terreno para erros tenros
e o solo sem dono e extenso
terrain vague para os embalos
à espera dos deslizantes afazeres
dos surtos de fuga dos membros de tarde
do futuro imperfeito dos desarvorados
e o deleite do uso bem ou mal ventilado de correr
no sentido contrário ao autocarro

e afinal queremos respirar alto
até deixar de saber o lugar das coisas

e afinal ainda queremos quase tudo

queremos cortar a linha destes versos


e usamos quando podemos a primeira pessoa do plural 



Miguel Cardoso, in 40XAbril, Lisboa, Abysmo, 2014.

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