ainda os carteiros andavam a pé
e a água com gás era no mar e o sangue grosso diluía
estendia-se a roupa nos areais
e ainda conhecíamos as pessoas da nossa vida
ainda se entrava e saía deste país
com a ligeireza de um empregado de mesa
ainda ninguém abusava da sua posição
a não ser para lançar filhos ao ar
o homem do talho pendurava corações excelentes
há muito se tinha abandonado a ideia dos números oficiais
procuravam-se ataques de fome deitando fogo a tocas
e daí nada surgia
a não ser um maior entendimento da terra
e dos seus camaleões sonolentos
farejadores de novas estradas
havia itinerância antes de haver autocarros
e os dragões vermelhos cerimoniavam aulas fúnebres
ainda a morte não tinha conhecimento de prosa
e era comum a paixão súbita por cadelas
e explicava-se a velocidade aos filhos
sem loção solar
e as correntes de ar cheiravam à planta do café
e já admirávamos as estrelas
sentados no colo do João dos Santos
ainda pedíamos desculpa quando nos sentávamos de viés
porque aprendemos o provérbio luandino
o sábio corre de costas
ainda não havia moedas nas piscinas naturais
e já o peixe-espada preto coloria porto-moniz
e já uma mulher baralhava uma aldeia
com a doçura da roupa trocada
e se havia motoristas era para levarem resumos
éramos todos criados sem toalhetes, só com abraços
ainda os nossos festivais eram por carta
o feminino de puto era miúda e de
abundância vagem
ainda o Líbano não fazia anúncios ao turismo
nem Portugal tinha mar
ninguém tinha dito “esse dinheiro vai
levar-nos à ruína”
e os homens usavam apenas marcas
de feras perigosas e não sonhavam ainda
escrever a soberanos
nem em catálogos literários
para smart-shops
e os frigoríficos ainda não interferiam
com a rádio áfrica
e a national geographic era apenas música
e as teorias eram horários que ninguém habitava
e a presença de um filho era a pose que o amor mais admirava
e o interior e o exterior
eram as posições que essa criança ensaiava
durante o seu sono
e ainda ninguém tinha ocupado as 30 vagas
para pintar na rua.
Nuno Moura, Canto Nono, Lisboa, Mariposa Azual, 2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário