terça-feira, 12 de agosto de 2014

Pedro Sena-Lino: Cemitério de Brecht


a minha infância é um animal deserto roendo as escarpas de Deus
ouço-a respirar a luz consciente
ainda da sombra cegueira que montanha os dias
procuro aquele que nasceu ontem de agora
é um movimento sem mãos
somos separados por um corpo mas unidos por uma cidade
somos a interferência da luz antes da luz
e eu quero despedir os olhos mas a cegueira sou eu
projecto-o contra os muros da cidade
há quem nunca mais tenha voltado de si mesmo
ouve-me e regressa-me
a minha respiração dói mais que os meus pés
nos mares de ruas levantadas
no acto físico de andar na pedra o que foi o coração
mil vidas antes todas ressuscitadas
sinto a recordação da minha própria vida
a rasgar a devolver a reter o próprio coração
a vida é uma água de pedra
bebo-lhe a chuva de luz
vejo-me devolvido o rapaz maior que o seu corpo
um rosto perdido entre movimentos suspensos
e todas as coisas que pisamos esgotados de ilusões
numa lápide que foi água triturada
a sobreposição de corpos quebrados
no coração dos olhos um ser que se amou
há milhares de sentimentos atrás
e o futuro a construir-se bombardeadamente do imperfeito
vejo-o-me
no centro de todas as ruas ressuscitadas
avenidas do que há de ser em jamais
e esquinas do impossível erguidas com o que afoguei no coração
uma cidade nasceu um homem


Pedro Sena-Lino, Material Angústia, Maia, Cosmorama, 2010.

Partilhado a partir de: Poems From The Portuguese

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