quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Ribossoma

A música mete o Céu entre as pernas enquanto a febre se enrola na cidade, a febre da cidade a subir pelos pulsos, a subir a noite dentro dos dedos, dos seus ossos finos. A luz vem‑se dentro de Cassandra — A luz vence dentro de Cassandra; percorre‑lhe o corpo em fotões ágeis, as coisas que ligam são dadas ao homem; quando as pessoas morrem transformam‑se em música, música que faz amor com tudo o que é vertical, e o silêncio é um contraceptivo que se possui a si mesmo, um meta‑silêncio que faz amor consigo mesmo sobre os campos de Marte, com os estorninhos em cima, com as nuvens em cima, por baixo um relógio suíço enterrado na areia. Mais acima a rapariga brinca enquanto o sol lhe bombeia uma vontade nova para as extremidades seguras, enquanto o coração e o céu todo bombeiam o sangue, quatrocentas vezes mais rápido que a rotação da terra sobre o seu próprio eixo. A música enrola‑se em cada célula com informação sempre nova (como ribossoma), a rapariga desenha a lápis número três a linha da costa, em sismografia perfeita, porque está dentro do eléctrico e apenas deixa o lápis em ponto morto, seguro nos dedos trémulos que com a trepidação do eléctrico desenham a costa da Córsega e da Sicília; África nasce dentro do eléctrico, e o sono percorre a Europa de uma ponta à outra, toca todos com os seus dedos finos feitos de areia que voa com o vento quente, como um piano — Como ribossoma, o silêncio come‑se a si próprio: África parte‑se ao meio por baixo da língua… A música a enrolar‑se em cada célula como se fosse deus, e por isso já o é, toda ela em movimento eterno de expansão… Todos os gestos são eternos, todos os pensamentos dão a volta ao mundo para chegarem
depois a nós outra vez com mais força, repetidos como um eco. Um eco que fuma todas as religiões e todas as crenças, o fumo que sobe dança no ar, como uma escultura em movimento, um museu volátil de fumo que adquire sempre formas novas. Rechearam as bombas e granadas, de geleia, rechearam o medo, de geleia — E agora ele treme com o seu gorro às riscas. O medo com medo de si próprio. De cair num doce sonho de pinguim para não voltar, ser já só o sonho sem a possibilidade de um acordar. Acordamos a cada segundo dando graças pela gravidade mas pedindo para subir sempre — Como um balão de hélio ao qual foi retirada toda a matéria.
A alma é unicamente orgânica. Orgânica no seu subir. Subir faz parte da força que puxa para baixo, magneticamente — todos os pólos se vão fundir, e da união nasce a alma. Como se fosse um fio elástico muito comprido, puxado por dois homens, um em cada continente, puxando o fio que atravessa o oceano (com todas as suas forças). Não rebenta o fio. Nem a morte rebenta o fio, apenas o enrola num novelo e o atira ao ar. Ele sobe sem gravidade possível. Sem chão possível, sem medo possível. A loucura toca o medo, vem timidamente arranjar‑lhe as unhas e o medo paga o serviço como se fosse apenas humano. Mas ele é animal, primário, primordial, por isso também humano e mais material do que o ferro que cria as pontes. Mais líquido do que o rio que lhe passa por baixo, mais volátil que o fumo que sobe. Sem rumo, sem razão, sem necessidade de filosofia. Sem precisar de um suporte que o legitime, porque só a luz legitima. Nenhum homem pode legitimar (seja essa legitimação uma guerra, um gesto, um beijo) apenas o faz, apenas o cria no espaço e tempo que são uma e a mesma coisa, expandindo‑se pelo Universo. O medo é uma fêmea atenta, guarda os seus filhos até ao momento em que não os pode ter mais porque o amor lhe lancetou as trompas. Mas ele continua a regar a partir de dentro, como se todos fossemos violetas com um cio impossível de controlar. O medo continua a criar deus: Ele é apenas o seu criar‑se eterno, ser criado a cada segundo é a sua matéria. O amor pinga dos braços, entrelaça‑os. Mãos, pernas, peito, tocados pelo milagre que é o Homem.
A coerência afundou‑se neste texto e agora não passa de ficção, é, foi, e será sempre ficção que contraria a natureza.
Muitos homens, com as suas meias de lã grossa tiveram um dia vontade de escrever todos os aforismos possíveis. Perceberam depois que toda a vida de um homem não chega sequer para produzir um aforismo e ele mesmo bate nas asas de uma borboleta, bate no peito de cada recém‑nascido, na pulsação da terra. Pulsar e ultrapassar a necessidade de aforismos é a nossa função. Já só a contradição é possível, a resposta a outra resposta, sempre num eco desenvolvido que ultrapassa e cresce com o anterior engrossando as pontas da estrela.
Temos sede de contar uma história hiper‑real e por isso abraçamo‑nos.
Uma borboleta pousa‑te nos braços como se fosse uma catedral, (muda, muda de gestos). As facas só servirão para cortar melancias — o riso permite que as estrelas não expludam… A música feita de fotões rápidos atravessa o corpo, nada por ele, com a sua língua fluorescente — a velocidade é a sua única salvação (como quando se patina sobre gelo fino).
Com os teus pés na água aqueces o lago, adiantas o degelo, um degelo que sonha com um andar seguro e líquido, um degelo que cobre a cidade, os diários do quinto andar ficam molhados, os poemas ficam molhados, quem os iria ler fica também molhado da água que os teus pés aqueceram…
A música mete deus entre as pernas (não que ele seja um mergulho, mas cair bem fundo dentro de cada artéria é a sua necessidade), por baixo das suas saias; o céu — uma aparição mariana dentro de cada célula ,em cada uma um Big‑Bang, um grande Início — sinfonia nuclear para dois búzios e um cavalo marinho. O coração bombeia a música para todo o lado, o planeta dá o sinal e treme — inconscientemente sabemos o nosso caminho, como uma abelha ou um rio, polinizar ou descer até ao mar, assim é a natureza humana com sede de caminho, a beber o futuro, e ela sabe‑a inteira, através do tacto como um cego — o riso é o próprio deus, ele vira os girassóis para o céu; com a sede de contar uma história hiper‑real temos os pés em dois continentes opostos, embrulhámos canções de amigo em papel de rebuçado em ponto de açúcar; o futuro cai nas línguas, está quente, elas entrelaçam‑se, as dos tocadores de sino, dos montadores de andaimes, dos antiquários, das mulheres dos antiquários, dos fabricantes de aquários, dos pescadores, das que criam a rede… A música é mãe de deus e filha do Homem; não que os intervale com o oceano pelo meio, mas liga‑os pelo riso — por uma guerra mais doce encherão os canhões de leite condensado, os aviões só poderão disparar esguichos de leite doce e gordo, choverá leite condensado sobre toda a Ásia menor, aqueles a quem chamaram terroristas ficarão pegajosos, tudo estará coberto por um manto branco, os ditadores ficarão recheados de susto e, com uma gula que não se sacia, lamberão o chão até tudo voltar a ser deserto outra vez.
O teu maxilar segura a fronteira entre o bem e o mal (ela não existe, por isso segura) o desejo permite que ela esteja viva. A música com os seus pés feitos de espasmos permite que as estelas não expludam, enrola‑se em cada célula como um big‑bang contínuo em tudo contínuo e irmão do esquecimento que tudo enrola e que mete sede nos copos, despejam‑se os copos, forma‑se um lago com todas as chaves das casas no fundo, com pneus no fundo, com homens que não pagaram as suas dívidas no fundo, no fundo estão também todos os que acreditam… O Sol lambe a música, com a sua língua de fogo, em movimento eterno… Dentro de cada célula, o Universo com sede de futuro bombeado por duas gémeas filhas da anestesia.
Uma abelha alimenta‑se de sono e de uma violeta, a luz está unicamente nos olhares; o sonho de um ditador africano. A fome de gente sobe pelos pulsos, é injectada por um futuro enfermeiro ainda por nascer. O sonho era real como uma imersão da ficção na realidade, a vigília vem do mar, como que soprada por um corno que percorre toda a América e acorda os que dormem. O futuro vem‑se dentro da memória, o futuro vence dentro da memória…
As tuas saias são os séculos a virem, a tua língua, futuro líquido em expansão (será falada pela gente a vir) … O sol lambe os pulsos da verdade, apalpa‑a, abraça‑a, possui‑a debaixo de água… O degelo com os seus pés quentes com veias azuis, passeará por cima de nós, extremamente devagar — O sol nada dentro dos teus olhos.
Os seus sexos são sinfonias a serem compostas por criadores ainda por nascer; Os seus dedos ainda por formar na barriga da mãe, os amantes ainda por se conhecerem. E toda a cidade chama por ti, como se a cidade toda fosse uma só pessoa, um Orfeu‑cidade que brilha no escuro. Um Orfeu‑cidade recheado de riso que sustem os prédios. Uma arquitectura Maior feita unicamente de alegria. Uma cidade que adora tudo o que é múltiplo e húmido. Uma cidade que adora a transpiração dos que passam no metro e é humilde como a paciência dos cactos… O útero da memória está recheado de música.
Os seus filhos serão outras melodias: Melodias que se sentarão dentro dos guardas florestais e dos bombeiros, melodias-bombeiras que voam dentro do fogo, que ardem no interior do peito: melodias que queimam os seus melhores poemas, ou fumam os seus melhores poemas; os seus melhores poemas são apenas tácteis e feitos de calor:
O futuro vem‑se dentro de Cassandra — o futuro vence dentro de Cassandra.
Ela escreve na areia molhada com um pequeno pau: Quando as pessoas morrem transformam‑se em música?

Vem uma onda apaga a pergunta. É a forma da água responder.

                                                                                       Nuno Brito, Duplo-Poço. Lisboa: Hariemuj, 2012

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