terça-feira, 22 de julho de 2014

Carlos Bessa. Olhos de morder lembrar e partir


A concorrência, ser melhor do que o outro
Que é senão amá-lo?
Como se hierarquiza raio-x a traição
A mentira?

As frases com que me digo
São para me dizer ou para te irritar?
Onde coomeça esta música esta vontade
Esta incapacidade de te ter e querer a mim obrigar?
 
Carlos Bessa, Olhos de morder, lembrar e partir, Lisboa, Black Sun, 2000.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Nuno Moura. O Livro dos Livros

  
1.
Uma mulher vai na parte mais bonita da rua.


O seu gelado passa de boca em boca no passeio contrário
mas pouco dos galos a combusta.


Apetece-lhe chegar a casa e pôr a cabeça sobre os pêlos
do peito.


Ficava-lhe bem uma barba postiça lá para baixo
mas há muito tempo que não o faz.


Um cigarro antes de ir dormir.
Um beijo para acordar o charlie brown.
A camisola da ginástica perto do saco perdido de frio.


2.
Foi trágico.


O homem respondeu ao assobio para cão.


3.
Nos quartos por cima do alterne viking choque dance bar
uma mulher veste uma roupa própria para sair.


Não diz nada ao príncipe nem às colegas.


4.
Na cervejaria número noventa à esquina
em fora de horas
o feiticeiro não resiste em levar um chocolate para os
seus miúdos.


5.
A c-mais-s tinha instalações com pessoas dentro de
cadeiras
em salas abrancadas.


Como ele esperava uma aparição, tinha os olhos
vermelhos.


Acendeu o cachimbo. Atrasada como sempre ela viria
para a aula
das oito e meia.


Quando ele for o reitor, ou o governador, vai dizer que
quer governar muitos anos
e a rapariga vai dar-lhe um grande beijo entre as pernas.


Para ela é abraçar o poder.
Para ele é o cheiro do cloro que ela traz depois dos
treinos.


6.
Apanhou um táxi e disse, – um desastre quanto é?


Nuno Moura, O Livro dos Livros. Lisboa, Mariposa Azual, 2000.

sábado, 19 de julho de 2014

João Bosco da Silva


Bom Dia
 ao Carlos, César, João, Sebastião, Paulo e Rui

Com o peso de todas as preocupação nas alças de uma mochila,
A manhã que começa com o cheiro a café, torradas e leite.
Bom dia e sente-se de verdade, porque se sente a frescura de mais
um dia,
Naquele momento nunca poderia ser mau dia,
Ainda se espera algo de novo, é certo ter-se algo de novo no dia,
Quando as preocupações todas dentro de uma mochila.
A manhã abraça-nos, fresca, cheia de portas abertas, de sonhos,
Como se fossemos os especiais, a esperança de um mundo que não
cresce.
Dos paralelos até à rua principal, passando pelos cafés que
acordam,
Com as vassouras a dar os primeiros retoques,
Como o pente e dedos molhados a dar os últimos,
A deitar aqueles cabelos que insistem,
Porque há sempre quem insista, quem queira fazer a diferença,
Quem vá contra, até que vem uma mão cheia de gel, marcas do tempo.
Com pedaços de felicidade à espera no átrio,
Para mais bons dias sinceros, de coração cheio e inteiro,
Com o cheiro branco da geada a fazer doer as orelhas e o nariz,
E eram todas as dores que tínhamos.
Pedaços de nós que ainda não reconhecemos,
Mas um dia, esta parte de mim é dele,
Aquela dele é minha, até que o pó vem e cobre tudo,
A tinta passa e faz-nos esquecer o que fomos, o que somos, por
baixo,
O que éramos quando a mochila era o único peso a fazer peso na
vida.
Entra-se pela porta com menos vontade do que com a que se sai,
Apesar de se saber que se vai sair a ser mais por dentro,
Aos poucos mais pesados, com um peso que não nas alças,
No pescoço, irradiando para os ombros, para as costas, para
dentro,
Onde se começa a duvidar que more lá uma alma.
Aos poucos e com o tempo a inocência que torna tudo leve,
A esvanecer-se, a ser apagada pela luz que nos apontam aos olhos,
Como num interrogatório, a ver se somos gente.
Que venha o toque e uma pausa para falar à vontade,
Para completar o que somos com os que somos também,
Aqueles primeiros, os pedaços de felicidade com quem partilhamos o
mundo,
O que se espera dele, sem saber que pouco nos espera.
Bom dia, e ainda temos muito pela frente,
Um dia inteiro de cada vez, até chegarmos lá,
E uma vez lá... onde é lá?
Aulas constantes onde é tão difícil acompanhar as vozes,
Testes todos os dias, tão difíceis, tão inúteis,
Para poder ter isto, que nunca quis quando o Bom dia sincero,
Isto que nunca sonhei quando acordei uma manhã para enfrentar mais
um dia,
Tão igual e tão diferente aos dias anteriores,
Com o cheiro a café, torradas e leite,
Em baixo na cozinha à espera, com um Bom dia sincero à espera,
A manhã depois da porta à espera, com um abraço de Bom dia,
Os que me são no átrio à espera, com um Bom dia em coro,
A sala à espera, com um Bom dia sábio,
O intervalo à espera e nós à espera dele, é um Bom dia.
Intervalos que se tornam cada vez mais curtos,
Cada vez mais raros, de semana a semana,
De mês a mês, de meio em meio ano, de anos a anos,
Até que só um nome, uma doce recordação, um pedaço de nós,
Cada vez mais longe, cada vez menos visível, debaixo de tanto
lixo,
A pesar no que somos, a esmagar o que fomos,
O que fomos capaz de um Bom dia sincero, com esperança,
Com as mãos cheias de nada, esperando com elas agarrar a vida,
Conquistar o mundo, que afinal, não vale a pena conquistar


João Bosco da Silva, in Bater palmas e sete palmos de terra nos olhos.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Nuno Moura.


Não há nada mais lindo
do que este clube de ar puto
com o leão jonas debaixo da palmeira
cabidiando o braço no meu muro esquerdo
o que eu fazia com ele
dar-lhe a minha lapela com águia de prata.

o leão jonas disse-me querem apanhar a minha sacana
mas eu dei-lhe as chaves do apartamento
em troca de protecção.

orientar a nova tendência das dúvidas existenciais
tem os seus proveitos.

se calhar no próximo mês estaremos na dúvida
quanto à nossa bondade.

e depois se nos poderemos deitar sozinhos
só com nós próprios ao lado.


Nuno Moura, Nova Asmática Portuguesa, Lisboa, Mariposa Azual, 2013. (segunda edição). p. 48.

Nuno Moura.


“envelheço e não aconteço
bato punhetas frente ao espelho
desejando quem não conheço
marujos, tropas, desportistas

penso e não existo
juncos silvestres um bom filme
meu deus abre as pernas”

(grafito que se encontra no túnel entre o c.c.b. e o padrão dos descobrimentos, não assinado)*
*(no início - ? – de 1997, este grafito foi submerso por outros de muitas cores e menos palavras)


Nuno Moura, Nova Asmática Portuguesa, Lisboa, Mariposa Azual, 2013 (Segunda Edição). 

Charles Baudelaire. O Albatroz


Às vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num vôo triunfal, numa carreira audaz.

Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!

Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.

O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!

Charles Baudelaire, As Flores do Mal.

Joaquim Cardoso Dias. Quarto Escuro


Estou demasiado perto
das coisas que não existem.
Devoro os meus animais
 e dou ar ao mundo,
com um dos seus cantores fascinados.
Sobre o que dissemos ontem, os dentes mais felizes.
E misteriosamente os braços são lindos.
Imaginam o que comiam se eu fosse
uma criança perfeita,
e têm pelos repetidamente fáceis de pensar.
Mas os outros já não existem na morte.
Tento acender outras imagens devoradas pelo tempo.
e sei que é por tua causa
que esta noite existe e se repete
a vida inteira.


Joaquim Cardoso Dias, in Meditações sobre o Fim: os últimos poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012. (p. 116).

Joaquim Cardoso Dias. Sem mentir


ainda não sei se o amor esteve aqui de luz acesa
e se caminhou nu toda a noite
pelo tecto do quarto mas
eu tirei a roupa toda bebi água
e não te telefonei
qualquer coisa assim atirou-me de bruços
para o coração e lembrei-me
de te esquecer desde o começo
muito longe e alto nas escadas de incêndio
foda-se como acreditar que te amo
sem mentir


Joaquim Cardoso Dias, in Meditações sobre o Fim: os últimos poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012. (p. 117).

Joaquim Cardoso Dias. Pequeno Poema


hoje vou acreditar que ao escrever
o nome de um pássaro branco
o teu silêncio fascinado
se atira ao mar
com estas asas


Joaquim Cardoso Dias, in Meditações sobre o Fim: os últimos poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012. (p. 118)

Renata Correia Botelho


é sempre a mesma curva
cega, neste troço de pedra lascada,
não há como escapar
às primeiras chuvas
ao piso escorregadio dos olhos,
despiste, falésia mortal,
o coração não entende
sinais vermelhos.

Renata Correia Botelhoin  Telhados de Vidro nº 2, p. 39, Averno, Lisboa, Maio 2004.

Partilhado a partir de As Folhas Ardem, de Manuel Margarido.

Renata Correia Botelho


viste que os dias não passavam
disto, e viste bem. desse lado
do céu, tens o melhor miradouro
sobre a madrugada. se encontrares
o pintainho que sepultámos,
em segredo e lágrimas, no
quintal das tias, pede-lhe o
arco da sua asa nas noites de lua nova.
remete-me, quando puderes,
pacotes de chuva miúda, gosto
de a ver decalcar a terra, fundir-se
com as sementes de milho
no canto da achadinha.
entretanto, vou montando o
telescópio, com as instruções
que me deste. põe-te à vista
e combinamos um gelado a
meio caminho,
à hora da infância.

Renata Correia Botelho, Avulsos por causa, Lisboa, Língua Morta, 2010.

Marta Chaves. Podias obedecer a um registo de perder


Podias obedecer a um registo de perder
o respeito, levantar a saia se a tivesses,
alçar a perna se cão fosses, mandar à merda
quem vem socorrer-te da vida e te decepa os dedos.

Com um rigor de artilharia que amortece o cansaço,
o combate quase parece sereno. De vez em quando,
fazes a conta de cor e dizes apesar de tudo, inspira-me
e não queres saber muito mais do que isto.

Estás na vida como na montra alguns relógios,
parado, e pensas numa sepultura no mar, tudo
menos esta terra, tudo menos uma corda, tudo menos
viver a pulso e ter de sacudir a chuva contra o casaco.

Os dias sem prognóstico, vivendo apenas para
esperar a madrugada, e que ela venha como o cortejo
e aprendas a ficar.

Marta Chaves, Telhados de Vidro n.º 16. Lisboa, Averno, 2012, p. 81.


Partilhado a partir de As Folhas Ardem de Manuel Margarido.

Emicida: Samba do fim do mundo


Wislawa Szymborska. Vermeer


Enquanto aquela mulher do Rijksmuseum,
em quietude pintada e concentração,
dia após dia, não verter o leite
do jarro para a vasilha,
o Mundo não merece
o fim do mundo.


 Wislawa Szymborska, Aqui (2009).

Wislawa Szymborska. Retrato de mulher


Tem de ser à escolha.
Tem que mudar para que nada mude.
É fácil, impossível, difícil, vale a pena tentar.
Olhos tem, se necessário, ora azuis, ora cinzentos,
negros, alegres, rasos de água sem motivo. 
Dorme com ele como qualquer uma, única no mundo.
Dá-lhe quatro filhos, nenhum, um. 
Ingénua, mas a melhor a aconselhar. 
Frágil, mas carregará o fardo. 
Não tem a cabeça no lugar, mas há-de ter.
Lê Jaspers e revistas femininas, mas constrói uma ponte.
Jovem, como sempre jovem, ainda jovem. 
Segura nas mãos um pardal com a asa partida,
o seu próprio dinheiro para uma viagem longa e distante,
o cutelo da carne, a compressa e um cálice de vodka.
Para onde corre assim, não estará cansada?
De maneira nenhuma, um pouco, muito, não importa.
Ou o ama, ou teima em amá-lo.
Para o bem, para o mal e por amor de Deus. 



 Wislawa Szymborska, Alguns Gostam de Poesia, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2014.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Margarida Vale do Gato. Émulos


Foi como amor aquilo que fizemos
ou tacto tácito? – os dois carentes
e sem manhã sujeitos ao presente;
foi logro aceite quando nos fodemos

Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
o acto de abraçarmos? foi candura
o termos juntos sexo com ternura
num clima de aparato e de sigilo.

Se virmos bem ninguém foi iludido
de que era a coisa em si – só o placebo
com algum excesso que acelera a líbido.

E eu, palavrosa, injusta desconcebo
o zelo de que nada fosse dito
e quanto quis tocar em estado líquido.


Margarida Vale do Gato, Mulher ao Mar, Lisboa, Mariposa Azual, 2010.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

Rui Pires Cabral. Plano de Evasão

Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite -

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.


Rui Pires Cabral, in Ladrador, Lisboa, Averno, 2012.

Museu da Língua Portuguesa, Estação da Luz - São Paulo


Rui Miguel Ribeiro. XX dias


XI - As noites

Noite após noite
apenas posso confiar na sua descida.
Este jogo de amanhãs
no peso das horas
em que procuro uma harmonia.
Sob esta luz contínua
não tenho um reflexo
há dias que não vejo o meu rosto.

A cama marca o calendário
fora de mim, débil raiz
que se alimenta da contagem,
as semanas, a roleta que jogo
com o futuro e as suas representações.

Há dias que não vejo o meu rosto.
Hoje dizem-me que atingi a aplasia.
Terei viciado o jogo? A vida?

Rui Miguel Ribeiro, XX Dias, Lisboa, Averno, 2009.


Partilhado a partir de Editora Averno

sábado, 12 de julho de 2014

Ruy Cinatti. Linha de Rumo


Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.


Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campos de flores
E silvas...


Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.


Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado.
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos,
Adrede.

Ruy Cinatti

Ruy Cinatti. Quando o Amor Morrer Dentro de Ti


Quando o amor morrer dentro de ti, 
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

Ruy Cinatti, Obra Poética.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Jorge Sousa Braga, Litania

Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida cheia de  farinha 
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
Na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
E das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a neroli
Com o teu útero
Que o anatomo-patologista dentro em pouco se encarregaria  de retalhar
 Com a lâmina do bisturi                         

Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.                                                   

Jorge Sousa Braga. Carta de Amor


A Eugénio de Andrade

Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração


Jorge Sousa Braga.

Fernando Assis Pacheco. Chula das fogueiras


Amor amor meu big amor
eu dizia shazam e tu n
ão me ligavas
pus Mandrake a seguir-te hábil nos truques
e tu não me ligavas
em qualquer planeta verde e avançadíssimo
tu não me ligavas
estendi o meu braço Homem de Borracha até S. Martinho do Bispo
e tu não me ligavas ponta nenhuma
tu querias era casar na Sé Nova
branquingénua abusar do meu livre alvedrio
fiz-te pois um manguito do tamanho dum choupo
e cá estou pai de filhos um bocado estragado
mas não por tua causa que já não existes
ó sombra de sombra à esquina da farmácia


Fernando Assis Pacheco, Variações em Sousa, Lisboa, Hiena Edições, 1987.

António José Forte. Retrato do Artista em Cão Jovem


Com o focinho entre dois olhos muito grandes
por trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra


António José Forte, Uma faca nos dentes, Lisboa, &etc, 1983.

António Jose Forte. Um Homem


De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda


António José Forte, Uma faca nos dentes, Lisboa, &etc, 1983.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Clarice Lispector. Precisão


O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

Clarice Lispector

Luís Miguel Nava. O Corpo Espacejado

Perdia-se-lhe o corpo no deserto, que dentro dele aos poucos conquistava um espaço cada vez maior, novos contornos, novas posições, e lhe envolvia os órgãos que, isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular. Ia-se de dia para dia espacejando. As várias partes de que só por abstracção se chegava à noção de um todo começavam a afastar-se umas das outras, de forma que entre elas não tardou que espumejassem as marés e a própria via láctea principiasse a abrir caminho. A sua carne exercia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, que em breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem o não soubesse, como luminosas cicatrizes cujo brilho, transmutado em sangue, lentamente se esvaía. Ele mais não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nas cinzas do qual, quase imperceptível, se podia no entanto detectar ainda a palpitação das vísceras, que a mais pequena alteração na direcção do vento era capaz de pôr de novo a funcionar. Resolveu então plastificar-se. Principiou pelas extremidades, pelos dedos das mãos e pelos pés, mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os intestinos e o coração o que minuciosamente ele embrulhava em celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído aterrador.

Luís Miguel Nava, revista Colóquio Letras, n.º 100, p. 116, Novembro de 1987.


Rui Caeiro. Bar dos 4 Gémeos


                Para o Manuel de Freitas

E se por acaso quiseres beber, tens
não direi toda a terra pois tudo
aquilo que nela há é escasso
mas uma estreita faixa em forma
de rectângulo ou em forma de país
e lá dentro à beira mar uma cidade
grande bonita e feia que é até
a capital e lá um largo – Praça do Rossio,
assim chamada – e lá um bar
(ah, finalmente) mas um bar
a céu aberto, sem balcão de zinco
e sem barman, sem tamboretes
nem cadeiras e também sem copos
nem garrafas, mas bar à mesma
- dos 4 gémeos, assim chamado –
situado cerca do meio da praça
e se por acaso tiveres mesmo sede
abeira-te deles (isto é, dos 4 gémeos
em bronze), põe a cabeça a jeito
aproxima a boca e bebe, consoante
a sede que for a tua, e bebe - água,
que é o que há lá para se beber.


Rui Caeiro, Revista Criatura nº 5.

Rui Caeiro. Um fio que te prende à vida


À semelhança de qualquer mortal,
tens a vida presa por um fio.
Uma espécie de fio de nylon mais ou menos resistente, mais ou menos frágil e quebradiço. Que te prende à vida.
....
O fio, esse fio, até podia ser baço ou resplandescente, pouco adiantava para o caso. Como não adiantava a circunstância de um deus qualquer estar a segurar numa das pontas.


Rui Caeiro, Um fio que te prende à vida, Lisboa, Língua Morta, 2011.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Ted Hughes. Fidelidade

Era um lugar para viver. Andava
só a ver passar o tempo, a namorar-te,
a flutuar na maré da manhã com as confusas sensações
dos meus vinte e cinco anos. Esvaziada e redecorada
À la mode, a Alexandra House
tinha-se tomado a sopa dos pobres. Estes eram os dias
anteriores à moda vanguardista dos cafés.
A ruidosa cantina do Restaurante Britânico,
uma das marcas deixadas pela guerra,
era um lugar para retemperar noitadas com pequenos-almoços.
Mas a Alexandra House era o lugar onde se ia para ser visto.
As raparigas que recebiam viviam no andar de cima,
acompanhadas por um grupo de perdidos, pessoas que só
  dormiam de dia,
exaustos de andarem pela noite. Nem sei como
consegui um colchão ali, num quarto do andar de cima,
com vista para Petty Cury. Um colchão
sem mais, em cima de umas tábuas nuas, num quarto vazio.
Era tudo o que eu tinha, o meu caderno e aquele colchão.
Sob os pegajosos ouriços dos castanheiros que se abriam,
pelo mês de Junho, abandonei o emprego, preocupava-me
só contigo, esbanjando tudo o que tinha poupado.
Livre da Universidade perdia-me
nas suas liberdades. Todas as noites
dormia naquele colchão, debaixo de uma manta,
com uma rapariga encantadora, que acabava de se escapar
ao marido para aquela experiência limite
de servir na sopa dos pobres. Que
cavalheirismo se apoderou de mim? Penso nisto tudo
como se tivesse acontecido num tempo que nunca passou,
que nunca usei, e ainda está, portanto, em meu poder.
Essa rapariga e eu dormimos nos braços um do outro,
nus e tranquilos como amantes, todas as noites, durante um mês,
sem nunca termos feito amor. Uma qualquer lei sagrada
tinha sido inventada só para mim.
Mas também ela lhe obedecia, como uma sacerdotisa,
delicada e meiga e completamente nua a meu lado.
Seguia com o dedo os arranhões que tu tinhas acabado
  de inscrever
a toda a largura das minhas costas, e até parecia que se queria
  juntar a mim
na minha obsessão, na minha concentração,
para manter a minha preocupação intacta.
Nem uma única vez me convidou, nunca tentou nada.
E eu nunca movi um dedo para além
de um consolo fraterno. Eu era como uma irmã,
e aquilo nunca me pareceu antinatural. Estava absorto,
tão fechado em ti, de uma forma tão cega,
que tudo o que não fosses tu não existia para mim.
E ainda hoje medito — embora já tenha dúvidas
se é motivo para me orgulhar, ou para me lamentar. A sua amiga
tinha um quarto maior, e era mais selvagem.
Mudámo-nos e ficámos no quarto dela. Aquele quarto enorme
transformou-se em dormitório e em quartel-general
alternativo a St Botolph’s. Bonita e roliça,
com um desenvergonhado riso de dentes ralos, esta
  sua amiga
fez tudo o que pôde para me ter dentro dela.
E nunca saberás da batalha
que eu travei para manter o sentido às minhas palavras,
no mundo que nós estávamos a construir.
Eu tinha medo que, se perdesse aquela luta,
alguma coisa nos abandonasse. Erguendo do solo uma
daquelas raparigas nuas, enquanto elas me sorriam
nos seus vinte e poucos anos, coloquei-as
no limiar do nosso improvável futuro
como aqueles que, precisando de proteger a sua casa
tinham por hábito sepultar, no limiar da nova casa,
uma criança inocente.



Ted Hughes, Cartas de Aniversário, Lisboa, Relógio d’água, 2000.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Rosa Maria Martelo. Azuis


I.
 Não sei se o fio do horizonte separa ou junta dois azuis. Faz rimar azul com azul, mas é talvez falsa, essa rima. O finito e o infinito, e ao meio uma só linha a cerzir azul com azul: céu e mar não rimam, e no entanto haverá rima mais perfeita? O mar, e depois dele o outro azul (que às vezes parece negro), assim por esta ordem. Ou é apenas falsa rima, a esconder, noite com noite, uma outra noite maior e mais dispersa?

(...)

Rosa Maria Martelo, Matéria, Lisboa, Averno, 2014.

Rosa Maria Martelo. Constelações

Houve sempre coisas magníficas
e muitas até de trazer no bolso
como a chama do isqueiro
pronta a refazer-se em luz e fogo aceso.
E apenas direi toda a verdade se disser
ter tido sempre ao alcance da mão
a perfeição: as cores dos frutos, um ovo
ruídos como os que fazem os ralos
na espessura do calor ou uma tesoura grande
em mesa de madeira. Havia, de verão, o vento leste,
e castanhas entre fumos ao fundo de uma rua
no inverno. Tudo isto, sim,
e ainda existe. Na parede, a cada risco
sobe pelos anos a altura dos meus filhos.
E havia dizer: também pensas assim? E os olhos
frágeis onde uns aos outros mais amamos,
que é no desamparo de nos sabermos sempre tão perto 
da tristeza, tão perto de um cão, ou de seres mais altivos,
como os gatos esquivos por causa disso, bichos.
Havia fazer de conta que não era isto,
Que não se via a inteireza crua disto.
Mas era quando mais assim que a vida cintilava
nos reflexos do fogo. Como um vidro antigo lavado agora,
brilha o que nos faz amar como morder, como morrer
de repente fulminados por afinal tudo ser grande,
demasiado grande sobre as nossas cabeças, e rente ao chão.
Abriram-nos a porta e o sorriso, chover, estar sol, haver
um grande temporal, cair granizo, a rua toda branca
lá em baixo. E o vento. Isto, e outras vezes, sempre,
aquele vaso que persiste em flores vermelhas cada ano,
janelas abertas, a cortina a esvoaçar vista da rua
como se as casas pudessem afinal voar,
as mãos pequenas das crianças
em volta do pescoço, o movimento dos cabelos. E a luz.
E o esquecimento, que salva do horror
e nos deixa acordar sem o passado, a história comprida
do aviltamento, o absurdo de haver injustiça nisto.
E a morte, única razão de nos querermos
para sempre, eternamente vivos.


Rosa Maria Martelo, Matéria, Lisboa, Averno, 2014.