Perdia-se-lhe o
corpo no deserto, que dentro dele aos poucos conquistava um espaço cada vez
maior, novos contornos, novas posições, e lhe envolvia os órgãos que, isolados
nas areias, adquiriam uma reverberação particular. Ia-se de dia para dia
espacejando. As várias partes de que só por abstracção se chegava à noção de um
todo começavam a afastar-se umas das outras, de forma que entre elas não tardou
que espumejassem as marés e a própria via láctea principiasse a abrir caminho.
A sua carne exercia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, que em
breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem o não soubesse, como
luminosas cicatrizes cujo brilho, transmutado em sangue, lentamente se esvaía.
Ele mais não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nas cinzas do qual, quase
imperceptível, se podia no entanto detectar ainda a palpitação das vísceras,
que a mais pequena alteração na direcção do vento era capaz de pôr de novo a
funcionar. Resolveu então plastificar-se. Principiou pelas extremidades, pelos
dedos das mãos e pelos pés, mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os
intestinos e o coração o que minuciosamente ele embrulhava em celofane, contra
o qual as ondas produziam um ruído aterrador.
Luís Miguel
Nava, revista Colóquio Letras, n.º 100, p. 116, Novembro de 1987.
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