Houve sempre coisas magníficas
e muitas até de trazer no bolso
como a chama do isqueiro
pronta a refazer-se em luz e fogo
aceso.
E apenas direi toda a verdade se
disser
ter tido sempre ao alcance da mão
a perfeição: as cores dos frutos,
um ovo
ruídos como os que fazem os ralos
na espessura do calor ou uma
tesoura grande
em mesa de madeira. Havia, de
verão, o vento leste,
e castanhas entre fumos ao fundo de
uma rua
no inverno. Tudo isto, sim,
e ainda existe. Na parede, a cada
risco
sobe pelos anos a altura dos meus
filhos.
E havia dizer: também pensas assim?
E os olhos
frágeis onde uns aos outros mais
amamos,
que é no desamparo de nos sabermos
sempre tão perto
da tristeza, tão perto de um cão,
ou de seres mais altivos,
como os gatos esquivos por causa
disso, bichos.
Havia fazer de conta que não era
isto,
Que não se via a inteireza crua
disto.
Mas era quando mais assim que a
vida cintilava
nos reflexos do fogo. Como um vidro
antigo lavado agora,
brilha o que nos faz amar como
morder, como morrer
de repente fulminados por afinal
tudo ser grande,
demasiado grande sobre as nossas
cabeças, e rente ao chão.
Abriram-nos a porta e o sorriso,
chover, estar sol, haver
um grande temporal, cair granizo, a
rua toda branca
lá em baixo. E o vento. Isto, e
outras vezes, sempre,
aquele vaso que persiste em flores
vermelhas cada ano,
janelas abertas, a cortina a
esvoaçar vista da rua
como se as casas pudessem afinal
voar,
as mãos pequenas das crianças
em volta do pescoço, o movimento
dos cabelos. E a luz.
E o esquecimento, que salva do
horror
e nos deixa acordar sem o passado,
a história comprida
do aviltamento, o absurdo de haver
injustiça nisto.
E a morte, única razão de nos
querermos
Rosa Maria Martelo, Matéria, Lisboa, Averno, 2014.
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