sexta-feira, 4 de julho de 2014

Rosa Maria Martelo. Constelações

Houve sempre coisas magníficas
e muitas até de trazer no bolso
como a chama do isqueiro
pronta a refazer-se em luz e fogo aceso.
E apenas direi toda a verdade se disser
ter tido sempre ao alcance da mão
a perfeição: as cores dos frutos, um ovo
ruídos como os que fazem os ralos
na espessura do calor ou uma tesoura grande
em mesa de madeira. Havia, de verão, o vento leste,
e castanhas entre fumos ao fundo de uma rua
no inverno. Tudo isto, sim,
e ainda existe. Na parede, a cada risco
sobe pelos anos a altura dos meus filhos.
E havia dizer: também pensas assim? E os olhos
frágeis onde uns aos outros mais amamos,
que é no desamparo de nos sabermos sempre tão perto 
da tristeza, tão perto de um cão, ou de seres mais altivos,
como os gatos esquivos por causa disso, bichos.
Havia fazer de conta que não era isto,
Que não se via a inteireza crua disto.
Mas era quando mais assim que a vida cintilava
nos reflexos do fogo. Como um vidro antigo lavado agora,
brilha o que nos faz amar como morder, como morrer
de repente fulminados por afinal tudo ser grande,
demasiado grande sobre as nossas cabeças, e rente ao chão.
Abriram-nos a porta e o sorriso, chover, estar sol, haver
um grande temporal, cair granizo, a rua toda branca
lá em baixo. E o vento. Isto, e outras vezes, sempre,
aquele vaso que persiste em flores vermelhas cada ano,
janelas abertas, a cortina a esvoaçar vista da rua
como se as casas pudessem afinal voar,
as mãos pequenas das crianças
em volta do pescoço, o movimento dos cabelos. E a luz.
E o esquecimento, que salva do horror
e nos deixa acordar sem o passado, a história comprida
do aviltamento, o absurdo de haver injustiça nisto.
E a morte, única razão de nos querermos
para sempre, eternamente vivos.


Rosa Maria Martelo, Matéria, Lisboa, Averno, 2014.

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