Para
o João.
Dou voltas e voltas à cabeça para que encontre o título de um poema. Várias mãos me ocorrem, com as suas linhas prevendo o futuro, tocando os cantos de páginas invisíveis. Sei que deixei de ser poeta, mas não deixei de guardar palavras e imagens. Deixei de ser poeta, mas não deixei de sentir e de encontrar no acaso uma linha que me percorre como uma voz única, a qual serei a única capaz de descrever. Uma descrição muitas vezes incompleta por carecer de plataforma: a folha vai continuar em branco enquanto souber viver. E quando morrer o meu epitáfio será o carinho de amigos e não o verso que escrevi na solidão. Muitas vezes esse verso mais branco que a folha que o preenche, um verso inseguro, medonho, de quem não tem nada para dizer para além do braço que termina em mão. Um verso tentacular, Um verso que é um cancro, Um verso que poderia ser meu, nascendo do meu corpo, mas que corrói por não ser capaz de viver autonomamente. Deixei de ser poeta porque me inquieta a criação divina e saber que não sou Deus e também não sou mãe. Jamais serei capaz de educar o meu verso à forma, cuidando, protegendo, alimentando nesta língua que estou cansada de falar. A pátria do Português entristece os versos: A pátria do Português entristece a vida do Poeta.
Dou
voltas e voltas à cabeça para que encontre um título de um poema. Porém, só
desejo esse título para que um dia recorde todos os poemas que poderia ter
escrito. Um título de quantas noites passadas em branco desejando contar os
feitos heróicos de um homossexual no Parnaso, ou talvez sonetos sobre Petrarca
esquartejado e quem sabe uma Ode a Lisboa. Variações contemporâneas de um
estilo profano, vãs tentativas de ser mulher do meu tempo - essa geração que se
dedica afincadamente à ordem dos conteúdos, estilizando temas que são meras
playlists do passado. Porque já não se teme o esquecimento, mas sim o
extravio do único perante o global. Deixei de ser Poeta porque já não temo a
morte. Essa horrível crepitação enfurecida que, desgasta o corpo e nos
torna pensadores, intelectuais, malditos, ensurdecedores, bêbados, magoados
e apaixonados.
Vejo
os homens a caminharem. Em toda a parte me parecem preciosos e gentis, e a
sua fragilidade um gesto naïve de egocentrismo a
quem a infância ainda importuna. Também me parecem belos os que matam e
corrompem, produtos das variáveis injustas da natureza e das escolhas que tecem
na escuridão. Escreveria por essa gente, mas essa gente só lê o que sabe ver.
Escreveria poemas, mas a noite também se arrasta no coração de quem tece
compaixão: os Poetas também tecem cegos poemas lúgubres.
Fortuna!
Vi
homens a caminharem, escrevendo com as mãos a teia que liga as cidades ao
centro do quarto do Poeta. Em toda a parte vi o fundo do copo, o cinzeiro cheio
e conversas com fim. Esse último verso que adormece no carinho dos lençóis: um
último sopro na boca de quem se despede à porta de Santa Apolónia. Uma última
verdade que aconchega os que nasceram feios, a quem se lhe escapa a mentira por
força do amor e respira vibrante o cheiro do leite materno. Deixei de ser poeta
pelo eco do choro: o vil que guarda o único para que o único não caia no
esquecimento. Esse único verso que acalenta todos os bebés que dormem
profundamente. Escreveria para eles, mas eles ainda não sabem ler. Escreveria
poemas, mas também eu não sei escrever. Não lhes sei escrever, não sei morrer
imortal: também eu crescerei a precisar desse verso.
Lígia Reyes.
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