Tenho uma janela que abre portas para o mundo: o
início e o fim da minha avenida. Tenho estas horas de tédio em que me escondo
nos punhos dos sobretudos que debaixo da minha janela passam. No punho, junto
ao pulso, mais perto do que no peito ou do que no interior da boca, sei do que
pensam, do que dizem a si mesmos, das justificações que repetem para calar este
desejo de corte. Esta vontade de lâmina.
Somos este tempo e este tempo é da idade dos que
vestem sobretudos e suportam o mais longo frio sobre os ombros. De olhar baixo.
Voz baixa, rente à terra sobre a qual somos os pontos menores de uma costura
que remedeia este ter-se nascido costeiro.
Não somos mais filhos de nossos pais, nem netos ou
bisnetos de nossos avós e bisavós, não crescemos à margem da terra que vê
partir, que vê chegar, os navios. Somos a memória mais presente do sepultamento
da nossa própria História, a três milhas a sudoeste da costa de Portimão em
Outubro de dois mil e doze.
Justificamos a noite com a ausência de um caminho.
Fazemos trocadilhos com o que caminhou sobre as águas enquanto nós, marés
várias, caminhamos sobre praças: uma ou outra vaga marítima lava o rosto às
pedras enquanto duas gerações embalam a tristeza com o medo, desviam a revolta
com silêncio, sacrificam palavras pela memória de frases não ditas. Somos
disto, desta espécie de derrota vestida de negro, óculos redondos e
guarda-chuva indiano num tempo em a que só os mortos dão razão. Submersos,
respiramos o interior da cor e, o interior da cor, sem luz ou olhos que lhe encontrem
salvação; lentos gestos afogados, lentas palavras colhidas do outro lado da
trincheira. E nos punhos isto, nos pulsos isto: esta vontade imensa de quebrar.
Beber toda esta água, secar o futuro no interior das mãos. Inscrever uma nova
cartografia que nos faça costa sem naufrágios nem saudade.
Beatriz Hierro Lopes.
Sem comentários:
Enviar um comentário