Fui ontem visitar o jardinzinho
agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu
me deste,
Soberba como um sol, serena como um
voo.
Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimados às luzes dos
planetas;
A abelha ainda zumbia em torno da
alfazema;
E ondulava o matiz das leves
borboletas.
Em tudo eu pude ver ainda a tua
imagem,
A imagem que inspirava os castos
madrigais;
E as virações, o rio, os astros, a
paisagem,
Traziam-me à memória idílios
imortais.
Diziam-me que tu, no flórido
passado,
Detinhas sobre mim, ao pé daquelas
rosas,
Aquele teu olhar moroso e delicado,
Que fala de langor e de emoções
mimosas;
E, ó pálida Clarice, ó alma ardente
e pura,
Que não me desgostou nem uma vez
sequer,
Eu não sabia haurir do cálix da
ventura
O néctar, que nos vem dos mimos da
mulher.
Falou-me tudo, tudo, em tons
comovedores,
Do nosso amor, que uniu as almas de
dois entes;
As falas quase irmãs do vento com
as flores
E a mole exalação das várzeas
rescendentes.
Inda pensei ouvir aquelas coisas
mansas
No ninho da afeição criado para ti,
Por entre o riso claro, e as vozes
das crianças,
E as nuvens que esbocei, e os
sonhos que nutri.
Lembrei-me muito, muito, ó símbolo
das santas,
Do tempo em que eu soltava as notas
inspiradas,
E sob aquele céu e sobre aquelas
plantas
Bebemos o elixir das tardes
perfumadas.
E nosso bom romance escrito num
desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem
luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que
um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas de
toucar.
Mas tu agora nunca ah! Nunca mais
te sentas,
Nos bancos de tijolo em musgo
atapetados,
E eu não te beijarei, às horas
sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e
delgados…
Eu, por não ter sabido amar os
movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias
mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes
desalentos
E tenho um riso mau como o sorrir
de Judas.
E tudo enfim passou, passou como
uma pena
Que o mar leva no dorso exposto aos
vendavais,
E aquela doce vida, aquela vida
amena,
Ah! Nunca mais virá, meu lírio,
nunca mais!
Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante!
Quando ontem eu pisei, bem magro e
bem curvado,
A areia onde rangia a saia
roçagante,
Que foi na minha vida o céu
aurirrosado,
Eu tinha tão impresso o cunho da
saudade,
Que as ondas que formei das suas
ilusões
Fizeram-me enganar na minha
soledade
E as asas ir abrindo às minhas
impressões.
Soltei com devoção lembranças ainda
escravas,
No espaço construi fantásticos
castelos,
No tanque debrucei-me em que te
debruçavas,
E onde o luar parava os raios
amarelos.
Cuidei até sentir, mais doce que
uma prece,
Suster a minha fé, num véu
consolador,
O teu divino olhar que as pedras
amolece,
E há muito me prendeu nos cárceres
do amor.
Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,
Julguei-os esconder por entre as
minhas mãos,
E imaginei ouvir as conversas das
aves
As célicas canções dos anjos teus
irmãos.
E como na minha alma a luz era uma
aurora,
A aragem ao passar parece que me
trouxe
O som da tua voz, metálica, sonora,
E o teu perfume forte, o teu
perfume doce.
Agonizava o sol gostosa e
lentamente,
Um sino que tangia, austero e com
vagar,
Vestia de tristeza esta paixão
veemente,
Esta doença, enfim, que a morte
há-de curar.
E quando me envolveu a noite, noite
fria,
Eu trouxe do jardim duas saudades
roxas,
E vim a meditar em quem me
cerraria,
Depois de eu morrer, as pálpebras
já frouxas.
Pois que, minha adorada, eu peço
que não creias
Que eu amo esta existência e não
lhe queira um fim;
Há tempos que não sinto o sangue
pelas veias
E a campa talvez seja afável para
mim.
Portanto, eu, que não cedo às atracções
do gozo,
Sem custo hei-de deixar as mágoas
deste mundo,
E ó pálida mulher, de longo olhar
piedoso,
Em breve te olharei calado e
moribundo.
Mas quero só fugir das coisas e dos
seres,
Só quero abandonar a vida triste e
má
Na véspera do dia em que também
morreres,
Morreres de pesar por eu não viver já.
E não virás, chorosa, aos rústicos
tapetes,
Com lágrimas regar as plantações
ruins;
E esperarão por ti, naqueles
alegretes,
As dálias a chorar nos braços dos
jasmins!
Cesário Verde, in V.A., A
Saudade na Poesia Portuguesa: Seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues,
Lisboa, Portugália, 1967.
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