[Infâmia]
A vadiagem de
sino na mão, garrafa cortada e olhos cegos, tronco seco e polido com que bate
compassivamente no chão, marcando tempos aos olhares que se desviam ou se fixam
nesta marcha de miséria entre vagões no subterrâneo. De olhos fechados, cega
vadia, cão vadio, latindo língua de sino, a mais fiel Portuguesa de há quantos séculos: o que deveríamos ter por hino à
glória de uma nação enfileirada numa procissão de pernetas, manetas, cegos ou
cancerosos, pedintes ou calados. Aos que não se enfileiram: este vagão é sala
de espera, e sem que alguém saiba, carrilhão de pequeníssimos gestos, vozes
cruas que, no trajecto, curvarão cabeça, corpo e dedos, baloiçando primaveras,
verões inteiros entre as margens dos dentes, sem pão que haja além destas
palavras de cobre dando pressa ao vagar de deus oculto em cada sinal de
emergência. Trago ao peito medalha de prata, sino encabeçado por três rostos de
asas pequenas; tenho a língua do ferro, e talvez por isso, talvez só por isso, saiba
do cobre e da diferença multicolor entre este e a ferrugem dos ponteiros que
ancoram passados à minha boca: o teu, o meu, o nosso. Sou vadia e o mesmo é
dizer que nasci do fundo do mar onde naufrágios sepultam o progresso de outras
vontades. Não tenho hino, glória ou fidelidade. E se tenho por língua esta
língua, é dela o toque, a vibração contra a emergência de haver quem nos salve
deste infame orgulho de ser português.
Beatriz Hierro
Lopes, [Espartilho], Coimbra, Debout
Sur L’Oeuf, 2015.
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