domingo, 23 de março de 2014

As Abelhas Produzem Sol II


O ar está carregado de ferro e eletricidade, está húmido, da janela vejo que falam dois amantes, vão carregados de luz nas duas partes, cada um leva dela a parte que os voltará a unir, vêm um homem que urina na parte exterior do elevador do metro, no cimento fica a mancha um pouco abaixo do grafiti que apareceu há poucas semanas, numa mancha de fundo cor-de-rosa onde está escrito a negro que tudo passa e tudo é prova – O planeta gira mais um pouco até que a luz chega aqui vinda do fundo, cortada por dois prédios e chega depois toda, num riso cheio, numa onda e depois noutra e noutra maior, a luz vem com os homens que vão descer rápido para o metro. Ainda está carregado, passam as camionetas na avenida vindas dos bairros de oriente, carregadas das pessoas que são trabalhadores no ocidente, na outra parte da cidade, o movimento que não se detém. Agora em sentido contrário os carros que passam no verde, o trólei ligado aos ferros e as pessoas que vão neles nas duas direções, o movimento impessoal dentro dos carros agora que chove e que a luz digna conduz para sul, para norte, no cruzamento que vejo da janela como um ponto – a luz que se dirige em todos os sentidos e trabalha, digna, trabalha, o semáforo verde e o vermelho ordena o trânsito e quando não funciona (já assistimos a três acidentes na mesma noite) a luz que regula o trânsito (vermelha verde vermelha) a luz que direciona, prevê, cuida, a luz que é homem e colocou a luz que trabalha, a luz que o homem criou. E agora na minha cama sinto o coração central do movimento, a luz que colocou outra luz para dirigir a luz - para criar a luz: Não outra, mas a mesma, a extensão do homem, o animal de riso cheio e que se estende – ouvimos a sirene, o cuidado (a polícia, as ambulâncias) quando ele se suspende, se abeira, se ri, vemos os reflexos rápidos, talvez num pequeno apartamento acima do nosso alguém esteja a escrever sobre a Supra Realidade, ou a rechear o forno, a hippie e o cão a dormir. O nosso núcleo a ser formada dentro de ti, a continuação impessoal da luz. Agradeço o dia. As manchas de sol no homem e a dignidade da luz, caminhamos com decisão em todos estes movimentos que nos cruzam, o prédio vê-se de fora sem chamar qualquer atenção. Tocamos, acendemos pontas - Temos na boca o animal invencível que tudo acende, o que nomeámos em todos os cruzamentos, que chamamos sobre todas as formas, o que regula, o que cria - o que acelera - dois manifestos, uma carta de pedido de emprego, a jamaicana que sai a chorar do serviço de emigração, os dois chineses exaltados. Difícil imaginar que o movimento seja a nossa casa, na cama entre a estrela-almofada entrelaçamos as pontas num mesmo movimento. O verde, o vermelho, o verde outra vez, há também o amarelo a mancha azul e vermelha silenciosa que às vezes a meio da noite nada no nosso quarto quando as patrulhas dos polícias param em frente da loja de conveniência. A estrela abraçada, as várias pontas que se cruzam, as células riem-se, as pontas cruzam-se e nadam na cama, ainda no cruzamento do sono com a vigília, as nossas células riem-se e dentro delas a luz trabalha e cresce. O verde, o vermelho, o verde outra vez. Em ondas o azul e vermelho do carro patrulha. Subtraído o vermelho, no fim fica só uma mancha azul.
Eu ouvi pela primeira vez Mahler no carro de um poeta que partiu. Ainda que a música procurasse reproduzir o movimento do mar, a luz vinha em ondas cada vez maiores.

A nadar em estrela na cama

A Dignidade de que falava Pico.
 Nuno Brito.

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