terça-feira, 25 de março de 2014

Inês Ramos

Perturbam-me as sombras da casa

os uivos das janelas

os olhares das fotografias nas molduras.

O chão do corredor que range quando o atravesso

as vozes dos vizinhos de baixo, as portas que batem.

Perturba-me o empregado do restaurante em frente

que me vigia quando fumo à janela.

Perturbam-me os arrulhos dos pombos

as obras intermináveis do prédio em frente

o gato morto e já ressequido no quintal da vizinha

o estar longe, o estar só.

Perturba-me o cheiro do cinzeiro

o chiar da porta da cozinha

o bolor dos pimentos há meses no frigorífico.

Perturba-me esta constipação

as chávenas com rachas

o não ter limões, o sangue nas mãos.

Partiu-se o frasco do mel.

Inês Ramos, in e chorava como quem se diluía em mel d’abelhas, Lisboa, Tea For One, 2013. (Coleção Matéria Mínima)


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