Nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a
homens, nunca vos trataram como a anjos.
Jorge de Sena, «Mar de Pedras»
Só ficando cego
posso fazer o meu trabalho. É a única maneira. Levei algum tempo até perceber
que era a única forma de isto poder resultar. Mais tarde pode dar-se o caso de
alguém vir dizer que eu percebi isso mais cedo do que quando vos informei. Que
empatei ou adiei esta declaração. Mas não é verdade. É possível que tenha não
querido ver, o que, tendo em conta as circunstâncias, até é adequado. A única
maneira de continuar, é ficar cego. Estou a dizer. Não é que seja preciso cegar
completamente. Mas é preciso ir ficando, sendo que no fim, quando o trabalho
estiver acabado, estarei, como consequência desse processo, completamente cego.
Comecei por perder algumas cores, agora estou na fase em que cores e
perspectivas se somem. Escapam-me, pequenas linhas de luz que me escapam. A
minha mulher, por exemplo, ela canta na sombra, alcandorada, a sua voz dura,
não a cor que ela veste, o corpo dela na varanda mais baixa, uma sombra cortada
contra a praia mais ao fundo. Eu tenho tempos de ter sido o homem que a viu,
mas as cores vão-se perdendo. Não são já tão nítidas. Escolhamos um dia
aleatoriamente. Ontem, por exemplo. Virei-me para o lado e fiquei a ver da
janela o vulto que se aproximava subindo a rua. Só quando ele estava mesmo
sobre a janela, um soldado de cabelo talvez amarelo, ele riscou o fósforo, a
garrafa no seu barro opaco com as flores posta sobre o parapeito acendeu-se,
uma parte das cores não estava lá, nunca se propagaram na refracção da luz, ele
olhou para mim, eu vi-lhe o nariz, as orelhas grandes, era um rosto sem olhos,
sem idade. Nunca cheguei a entender, enquanto podia ver nitidamente,
exactamente o que é a cor. Abrupta, a mão bateu contra o vidro. Ele fez este
gesto porque não pode dizer se eu estou já completamente cego e é até possível
que esta cara me lembrasse do meu rosto se eu a pudesse ver (e eu conheço-a, a
memória do meu rosto é completamente nítida, conheço-a melhor agora, a minha
memória de todas as imagens, de resto, é agora muito mais aguda). Ficámos a
olhar um para o outro, a piscar os olhos no crepúsculo. Podia ser que noutro
tempo nos pudéssemos ter sentado um diante do outro e que a beleza de um
espantasse o outro. Eu sentado no meu banco, do lado de dentro da loja, ele do
lado de lá, com o braço a afastar a coronha da espingarda do vidro. Imaginei
que podia ser ainda um rapaz, ou podia ser que fosse cara de barba feita, que
melhor me enganasse. A água corria nos vidros e era já tarde e digo-te mesmo
que não sei. É como te estou a dizer. É preciso que cegue. Para ver, há todas
as coisas que deixarei de ver. Quando comecei, pensei que este era só o meu
trabalho, que nada me ia ser tirado. Não que alguém me tivesse prometido alguma
coisa, ou que me tivesse pedido alguma coisa, não foi isso, nada disso. À
medida que o tempo foi passando, fui fazendo concessões de todo o tipo. No
princípio, talvez que fosse apenas o medo de ficar sem trabalho. O que acontece
a um homem a quem tiram o trabalho ou àquele que o perde? Na minha cabeça o som
de duas sílabas, ca-sa, assim, divididas por um hífen e eu caindo no
interstício, com uma nuvem de pó a levantar-se e as fundações da estrutura a
partirem-se frágeis como os ossos de um velho e mesmo até o meu corpo a
sumir-se, a acabar-se de repente, na margem de um passeio qualquer, numa
qualquer beira de estrada, sem cinematografia nenhuma, na sarjeta mesmo. Sem
trabalho, não és parte da estrutura, ou a estrutura rejeitou-te, não podes
comprar o teu pão. O teu contracto social. Para um solitário como eu, o pão é o
único laço que me une à sociedade a que pertenço. Repara que é como eu posso
ser tolerado pela estrutura. Eu nunca pus a pergunta de outro modo. O que
acontece a um homem com trabalho? Eu falo a mesma língua, sou pago com o mesmo
dinheiro, fui educado nas mesmas escolas e tenho a mesma religião, ainda que
nenhuma pátria valha ou explique o meu amor. Este corpo não tem de verdade
idioma, hino, bandeira. Posto noutro sítio, aprenderá outra língua. E outro
remédio não terá que escrever-se nela. E como qualquer outro, tenho cuidados
com os que me rodeiam. Tenho por eles cuidado. Nesta mesa, com um canivete,
alguém riscou «nunca vos falaram como a filhos, nunca vos pagaram como a
homens, nunca vos trataram como a anjos». Antes de mim, andou para aqui um
leitorzito de Jorge de Sena. Leitor. Como eu. Talvez o país que me resta seja
isto. Cara e olhos e talvez óculos e sentado sobre a janela, ora atento ora
desatento. Muito pouco diferente de mim, talvez. Os dedos dela, por um instante,
pararam sobre a minha testa. Eu nunca a vi. Ela tocou-me, foi só isso, mais
nada. Sofrimento nenhum nisso. Sofrimento em nada. Por um instante ameaçou o
meu limite, qualquer coisa se abriu nesse lugar. Como eu. Talvez a única coisa
que eu seja. O que guarda a narrativa. É por isso mesmo preciso que vá ficando
cego. É a única maneira de conseguir fazer isto. Quando comecei, isto era só
mais um trabalho. Mas à medida que o tempo foi passando, fui-me sentindo cada
vez mais desligado de horários, entidades patronais, colegas, escritório. O
trabalho começou a andar comigo. Não que tanto dele gostasse que ofício fosse.
Não é um desses casos. Antes isto. É necessária a troca, versão civilizada do
sacrifício. E a troca é este luxo. O que eu não posso. Todo o meu amor
inteiramente.
Tatiana Faia, Retirado de
Enfermaria 6.
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