segunda-feira, 3 de março de 2014

Ode canção


A memória foge para dentro dos casulos negros,
 mergulha ao fim da tarde, para dentro do vulcão
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mergulha para dentro do espelho
a ser moldado pelas mãos quentes de um futuro artesão etrusco.
 enrola as cidades marítimas,
as futuras e as do passado:
 as que já foram queimadas pelos vulcões, inundadas pelo mar,
 levadas por tornados, abandonadas pelo último habitante.
Fuma-as em mortalha de prata:
 condensadas, cilíndricas, marítimas na espera:
  apressa o fim da história para dentro dos pulmões,
 para dentro do coração, para começar uma nova.
 Em novelo contínuo, renasço a cada perda,
 a cada segundo com o mapa do coração no bolso:
os vasos sanguíneos, as pequenas articulações,
o pulsar terno, a respiração segura:
traí o tempo por um incesto maior;
mãos, pernas, braços entrelaçados,
gente a entrar no metro, gente a sair do metro,
a mesma pulsação forte, segura;
em cada esquina recomeça a história da humanidade,
 toda em febre contínua, em novelo contínuo:
 reescreve-se pelo suor, por todos os poros:
mergulho nela, nado nela, folheio-a rápido:
 é impossível não sentir culpa enquanto se folheia,
nas pontas dos dedos, a história toda,
gente com gente dentro,
com os seus calções apertados,
 saias, botas, cio, uniformes de trabalho,
 pequenos sinos de bronze dentro dos pulmões;
a espera é cilíndrica como uma cuba, a culpa é cilíndrica como uma cuba,
e a mais perversa medusa com o seu bikini vermelho pesa o fundo do mar numa balança equilibrada:
 não há coisas equilibradas, só a morte é equilibrada mas
 não passa de um evento como andar de bicicleta;
 com o seu bikini vermelho pesa o fundo do mar,
com o seu bikini vermelho fuma o fundo do mar,
enrola as cidades marítimas futuras,
as da costa da Líbia, as da costa de Córsega,
 leva consigo a memória dos camponeses,
está no cio das baleias, no seu leite gordo e espesso,
 está dentro dos cactos, na alucinação dos cactos:
traí o tempo por um farol, pela memória mais pura e salgada,
pela memória de um farol que rega as violetas cheias de sol líquido no caule, uma memória que arde, que chove, que sua, que transpira, que chora,
que limpa as escadas, que vai ao hipermercado, que apanha navios,
 que queima navios, que uiva, que fode, que se queima com gasolina a si própria a cada segundo,
uma memória no subsídio de desemprego que corta as suas pontas para crescerem novas e com mais força, uma memória que pinga:
 a história toda, bebo-a de cada ser humano, contínua a sua corrente,
 a respiração ofegante; tenho um pacto com o futuro, com tudo o que flui, escorre-nos quente dentro dos pulsos, entra-nos no coração;
com todas as suas artérias –
o sol a pingar para dentro da sombra dos gatos,
 dobram os sinos link,
 dentro do peito, link link link,
com o seu bikini vermelho enrola as cidades, todas elas santas e descalças,
com os seus muros a derreterem,
com o seu tempo a deformar-se em sinos de fumo
 com as suas vielas e praças a derreterem, com as suas antenas de prata,
 com os cafés cheios de gente e de libido,
 só o riso é deus, só ele molda verdadeiramente a cara,
tudo o resto é prosa e a prosa não vale mais do que fazer rir uma criança,
 pôr a andar um moinho de vento, regar os girassóis:
 tenho um casulo negro no lugar do coração e
 Deus deu-me unicamente a hipérbole, única salvação,
 uma casa maior com uma clarabóia grande,
 a memória rega-se a si própria de gasolina e incendeia-se na noite quente,
arde nos fios dourados e é em tudo rede contínua e febre.
A sombra dos lírios vem-se dentro das baleias, arde no pulso,
o farol entra dentro de mim com o seu cio cor de laranja ao fim da tarde,
 o interior do farol possui-me com a sua memória salgada,
 em rede, vem-se dentro de mim, mergulha dentro de mim.
Nado dentro dele, braços aflitos em prosa, todos,
 dentro da boca passa um rio,
no fundo do lago estão as chaves dos diários dos ditadores mortos.
Quem escreve o fim da história mais não faz do que a começar,
 todas elas em novelo contínuo uma obra nunca é acabada apenas abandonada, toda a história universal,
 apanha o metro, dentro de cada célula, a correr nos fios de cabelos,
 quente, a pulsar, toda ela dou-ta condensada:
em letra uncial uma ode escrita a fluorescente na mortalha de prata –
Ode que foge, contínua para dentro dos pulmões.
Toda a história universal dou-ta fluida num abraço.

Nuno Brito.

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