quarta-feira, 26 de março de 2014

Inês Ramos

Decidi escrever três dias antes da morte
como se a morte tivesse vindo há três dias.
Tenho fome, mas ignoro-o
Uma morta não come.

No entanto
 tenho uma ligeira dor de cabeça.
Enterraram-me ao lado do bosque negro de ébanos erectos
que uivam desalmadamente.

Na casa, silenciosa
a empregada lava o chão da entrada.
E no meu quarto, a minha mãe dorme
agarrada ao meu bilhete.
No chão, aos pés da cama, os meus sapatos
a minha saia verde nas costas da cadeira
e o frasco dos comprimidos vazio,
sobre a mesa de cabeceira.

Minha mãe está velha. Terrivelmente velha.
Mais velha do que a filha morta.

Afago-lhe os cabelos brancos
sento-me à secretária
e escrevo um bilhete.
Mãe morri há três dias.
Desculpa só te escrever hoje.


Inês Ramos, in Meditações sobre o Fim: os últimos poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012.

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